HISTÓRIA DO SINDICATO DE HOTELARIA


História do sindicato

 

 

 

 

 

 

 

INDICE

NOTA PRÉVIA

A FUNDAÇÃO DO SINDICATO (1907 – 1913)

ASSEMBLEIA CONSTITUINTE, SEDE E ESTATUTOS

DEIXAR DE PAGAR PARA TRABALHAR – AS PRIMEIRAS GREVES

A LUTA PELO DESCANSO SEMANAL – UMA VIAGEM AO NORTE

A CLASSE E A REPÚBLICA

A VITÓRIA DOS BIGODES

UM SINDICALISMO REIVINDICATIVO E REVOLUCIONÁRIO NA REPÚBLICA

UM JORNAL COMO ARMA

 DISSOLVENTES, INTRIGA, EXPULSÕES, E UMA LUZ AO FUNDO DO TÚNEL

O CONGRESSO DE TOMAR – A GUERRA – O REFORMISMO NO SINDICATO (1914 – 1921)

SABER FALAR COM OS PATRÕES, MUDANÇA DE ORIENTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

GUERRA À GUERRA, O AGRAVAMENTO DA CARESTIA DE VIDA

EXCLUÍDOS DO HORÁRIO DE TRABALHO, O FIM DA PAGA PELO TRABALHO

UMA ASSOCIAÇÃO DE CLASSE DE MULHERES, O MOVIMENTO CONTRA O LIVRETE

GREVE, GREVE GERAL REVOLUCIONÁRIA, PELA ABOLIÇÃO DA GORJETA – OS ANARQUISTAS NO SINDICATO (1922 – 1925)

O COMEÇO DA NOITE FACISTA (1926 – 1935)

 

TRAIDORES, CISIONISTAS, «NACIONAIS» E FASCISTAS

A PROIBIÇÃO DA GORGETA, O FIM DA CONDIÇÃO LEGAL DE

DOMÉSTICOS

UNIR FORÇAS E REORGANIZAR PARA RESISTIR – A INTER-SINDICAL

A CLASSE NA GREVE GERAL DE 18 DE FEVEREIRO DE 1934, A COOPERATIVA COMO REFÚGIO, A CLANDESTINIDADE

 

 

NOTA PRÉVIA 

Hesitou-se inicialmente entre a elaboração de uma resenha histórica reduzida, que alinhasse datas, factos e acontecimentos, sem contextualização nem interpretações ou considerações, e uma versão mais longa que assinalasse as principais lutas e reivindicações dos trabalhadores em cada época, alguns elementos dos contextos socio-políticos em que ocorrem, as vitórias, as derrotas, e os resultados obtidos em direitos e na melhoria das condições de vida dos trabalhadores e das suas famílias.

Porque o material disponível para o efeito assim o permitia optou-se por fazer as duas coisas. Uma cronologia. E para que os trabalhadores e activistas sindicais da hotelaria interessados no conhecimento mais aprofundado do percurso da sua organização de classe, elaborou-se também um texto mais desenvolvido para o período que vai de 1907 a 1935.

Assim, serão feitas referências à constituição de associações, seus fins, respectiva linha ideológica, ás suas alterações organizativas, de orientação politica e de poder.

Ficará demonstrado que desde a fundação da primeira associação de classe houve sempre continuidade de organização. Mesmo em momentos de rotura no regime politico, como em 1910, 1926 e 1974. A massa associativa, parte dos militantes sindicais, e componentes da estrutura sindical, transitaram para as formas organizativas que se seguiram. Demonstrando que o nosso sindicato e outros dos que existem actualmente, não nasceram com a atribuição do alvará corporativo, como por vezes tende a pensar-se, devido ao apagão histórico de mais de quatro décadas provocado pela censura do regime fascista.

No fim, poderemos verificar que valeu e vale a pena lutar.

 

A FUNDAÇÃO DO SINDICATO (1907 – 1913)

Em 1907, Portugal era um pais rural, atrasado, pobre, com a maioria da população analfabeta e a viver da agricultura de subsistência.

Nos campos e na construção civil o trabalho era de sol a sol.

No serviço doméstico, onde se incluíam os que trabalhavam nos hotéis, cafés, restaurantes e similares, na pequena industria e no pequeno comércio, o horário de trabalho não tinha limites.

O trabalho por empreitada ou à peça nos alfaiates, sapateiros, modistas, carpinteiros, marceneiros e nas fainas agrícolas, era a regra.

Só em redor das duas grandes cidades, Lisboa, Porto, e no distrito de Setúbal, encontrávamos alguns pólos industriais em desenvolvimento.

Nos centros urbanos, ao lado dos operários metalúrgicos, ferroviários, da construção civil, conserveiros, corticeiros, tabaqueiros, Manipuladores de pão e tipógrafos, germinavam pequenos comerciantes, caixeiros, professores, funcionários públicos, escriturários, viajantes, soldados e marinheiros, carroceiros e estivadores.

Em palácios, casas particulares e hotéis, cafés e restaurantes de Lisboa, trabalhavam alguns milhares de criados e criadas, desligados da movimentação operária reivindicativa e intensa da época.

As suas condições de trabalho eram aviltantes. As criadas e criados de casas particulares estavam ao dispor das patroas, 24 horas por dia, em regra apenas a troco de comida e dormida. Os criados, cozinheiros e moços de cozinha de cafés, restaurantes e hotéis, trabalhavam entre 15 e 18 horas por dia, sete dias por semana.

Em vários cafés da Baixa, os criados de mesa encerravam as portas do estabelecimento ás duas da manhã, colocavam enxergas de palha sobre as mesas em que tinham servido os clientes durante o dia, ali dormiam quatro ou cinco horas, findas as quais arrumavam as enxergas, limpavam as mesas e o chão e recomeçavam o serviço.

A remuneração dos criados de mesa era constituída por comida, nos restaurantes e nos cafés que serviam refeições, e pelas gorjetas, das quais ainda tinham que retirar uma parte a fim de pagar uma espórtula ao patrão, a título de limpezas. A farda, libré, fraque ou paletó, calça preta ou de fantasia, conforme a categoria da casa, era por conta do trabalhador.

No Hotel Francfort, os criados entram às 7 da manhã e saem ás 10 da noite. Se adoecem, quando regressam para reocupar o lugar, têm de pagar 800 réis por cada dia faltado. Não podem ir à rua durante o dia, não podem falar com pessoas nem receber correspondência. Até para se despedirem, têm dificuldades, pois o patrão “guarda-lhes” o ordenado de alguns meses.

Os moços de cozinha ganham entre 100 e 150 réis por dia.

No Café Suisso, cada um dos empregados é obrigado a pagar 9oo réis por dia. Uma média de 50% do que obtêm em gorjetas

No Café Martinho, alem do pagamento de verbas semelhantes, os empregados de mesa são obrigados a pagar todos os materiais partidos ou desaparecidos fosse quem fosse que os partisse ou fizesse desaparecer.

Cerca de metade dos criados e cozinheiros de Lisboa eram galegos que se sujeitavam a tudo para mandar algum dinheiro para a terra. Dizia-se na altura, que os portugueses preferiam trabalhar na construção civil e outras indústrias do que sujeitar-se a estas condições de servidão. Não será por acaso que ainda hoje ouvimos dizer de quem trabalha muito, ‘trabalha que nem um galego’.

Naquele dia a dia, os paquetes que atracavam no Porto de Lisboa, despejavam na cidade gente de fora. Passageiros, tripulantes, aventureiros e turistas. No Sud-Express, chegavam à Estação do Rossio, em 1ª classe, burgueses, latifundiários, banqueiros, diplomatas, escritores e artistas, vindos de Paris. Os mais abastados entravam directamente da Estação, para o luxuoso Hotel Avenida Palace. Edifício imponente, de salas e quartos amplos. O único em Lisboa que tinha sido construído de raiz para ser hotel, explorado pela companhia Wagons Lits que tinha ali ao seu serviço mais de cem empregados. Os restantes eram simples adaptações de prédios residenciais.

Em frente do Avenida Palace, no actual Largo D. João da Câmara, no lugar hoje ocupado por bancos, estavam o Café Suisso e o Café Martinho[1]. O primeiro a ter uma sala só para senhoras, e por onde passaram Herculano, Garrett e Cesário Verde. Café em que Pessoa se senta diariamente a beber o seu café e bagaço, e onde o jovem escritor Aquilino Ribeiro, também vai, embora prefira frequentar as tertúlias do Café Gelo, poiso de operários, empregados de comércio, funcionários públicos e jornalistas.

A menos de cinquenta metros, na rua 1º de Dezembro, situa-se o requintado Leão de Ouro, restaurante predilecto de Eça e de outros dos Vencidos da Vida.

Servir Burgueses, intelectuais e políticos, permitia aos criados de mesa um convívio que lhes abria os olhos para horizontes cada vez mais vastos. A confraternização com operários socialistas, anarquistas e revolucionários, nos bairros e na rua, acirrava-lhes o espírito de revolta contra a exploração a que estavam sujeitos.

Numa das muitas tabernas e casas de pasto que circundavam os cafés da Baixa frequentados pela pequena e média burguesia, começaram a juntar-se regularmente alguns ‘criados’, onde pontificavam Manuel Fernandes Lopes, José de Almeida Duarte e Luciano Gil Montes, criados de mesa, Felício Rodrigues, Gerente, e Manuel Rodrigues Correia, cozinheiro, invulgarmente bem informado e culto para a média da classe. Para ele, estava claro que a classe tinha de seguir o exemplo dos outros operários. Criar um jornal que defendesse os seus interesses, e constituir uma associação de classe que unisse todos os trabalhadores.

As associações constituídas até à data pelos trabalhadores dos hotéis, cafés e restaurantes, são limitadas.

 A Associação dos Cozinheiros, a primeira a ser criada em Lisboa, em Janeiro de 1890[2], mutualista, está praticamente desactivada.

A Associação dos Criados de Mesa, Soc. Cooperativa Lda, constituída a 22 de Maio de 1904, após mais de dois anos de canseiras, diligências e cunhas para obter autorização, levadas a cabo por um ‘criado’ galego do Paço Real, Francisco Bustos, e por outros criados em palácios de Lisboa, também tem apenas o fim mutualista de precaver o direito a um pequeno socorro pecuniário na velhice, e ajudar os associados o encontrar trabalho.

A 7 de Agosto de 1907, no início da ditadura de João Franco, quando este ainda se afirmava democrata, como ironizava o sindicalista anarquista Manuel Joaquim de Sousa, sai a lei do descanso semanal obrigatório.

A conquista do dia de descanso semanal, significou para aqueles que puderam usufruir dela desde logo, uma redução de 12 a 14 horas por semana no horário de trabalho. E, embora a generalização deste direito apenas tenha sido feita durante a Republica, o princípio estava adquirido, e foi sem margem para dúvidas uma grande vitória da luta dos trabalhadores.

Mas, como todas as leis, esta também vinha cheia de buracos. De tal modo que, na hotelaria, todo o patronato se furtou ao seu cumprimento. E, viria a ser necessária mais de uma década de lutas, para que a maioria dos trabalhadores desta actividade tivessem o seu dia de descanso semanal.

Manuel Rodrigues Correia e os companheiros, na sua maioria criados de mesa, que constituíam o núcleo mais combativo da classe, concluíram que tinha chegado o momento de avançarem com o projecto que vinham amadurecendo.

Após o regresso, em Outubro, dos camaradas que tinham ido trabalhar para Vidago, Figueira da Foz e outras praias e termas, reiniciaram reuniões, constituíram o Grupo de Propaganda e Defesa dos Interesses dos Empregados dos Hotéis, Restaurantes e Cafés, quotizaram-se para fazer face ás primeiras despesas, alugaram um 1º andar na rua do Poço do Borratém, e iniciaram a campanha pró-associação de classe através da propaganda do associativismo.

O Grupo de Defesa falou com gerentes e alguns patrões na tentativa de os levar a cumprir o direito ao descanso semanal, mas as diligencias foram totalmente infrutíferas. Na óptica dos proprietários, fechar ao Domingo ou a qualquer outro dia, era impensável. E, dar descanso com a casa aberta, implicava a admissão de mais empregados. Alem disso, os empregados dos cafés e hotéis, eram domésticos, e a lei, só se aplicava ao comércio e industria e remetia a sua regulamentação para a câmara municipal, diziam.

 Entretanto, o ano chegava ao fim. As festas luxuosas no Palácio Real, os cortejos e os grandes almoços com a alta sociedade levavam ao rubro a indignação da população informada. A discussão sobre o escândalo dos adiantamentos à Casa Real exaltava os ânimos da pequena e média burguesia. A monarquia estava cada dia mais desacreditada. A oposição republicana e a Carbonária conspiravam. Respirava-se um ambiente pré-revolucionário. Em Novembro, João Franco obtém a assinatura do rei D. Carlos no decreto que lhe permite prender e deportar os seus opositores. A 21 de Janeiro de 1908, fracassa mais uma tentativa revolucionária republicana que resultou em inúmeras prisões.

No dia 1 de Fevereiro, o rei e o seu filho Luís Filipe são abatidos no atentado do Terreiro do Paço, a tiros de carabina, por Alfredo Costa e Manuel Buíça, que logo ali foram mortos pela polícia, pagando com a vida o acto regicida.

Os criados de mesa eram testemunhas privilegiadas das acesas discussões politicas de café, muitas vezes participando nelas. O descontentamento e a revolta da classe multiplicavam-se perante a posição retrógrada do patronato relativamente ao descanso semanal.

 

[1] Não confundir com o actual Martinho da Arcada, do mesmo dono e que só mais tarde viria a ter as preferências de Fernando Pessoa.

[2] Fonseca, Carlos, História do Movimento Operário, «Estudos e Documentos» Vol. I, Europa-América

ASSEMBLEIA CONSTITUINTE, SEDE E ESTATUTOS

Num Domingo de Fevereiro de 1908, num 1º andar do número 12 da Rua Luz Soriano, em Lisboa, reúne-se um grande grupo de militantes operários, parte deles ligados ao Partido Socialista e aos grupos anarquistas, com o objectivo criar um diário de carácter sindicalista[3].

Manuel Rodrigues Correia e José de Almeida Duarte, do Grupo de Defesa dos Interesses dos Trabalhadores de Hotelaria, e que viriam a ser Redactor Principal e Editor, do primeiro jornal porta-voz da classe, estiveram presentes nesta histórica reunião do sindicalismo português.

Estava-se perante a primeira tentativa séria de unir o movimento sindical e de estabelecer uma coordenação geral da sua acção. Socialistas, anarquistas e sindicalistas revolucionários, puseram-se rapidamente de acordo e constituíram um «Grupo de Propaganda Social» com representantes das correntes politicas e ideológicas presentes, para no dia 18 de Março, no aniversário da Comuna de Paris, fazerem sair o primeiro número do jornal que acabavam de aprovar.

O Grupo de Defesa, apoiado por alguns activistas sindicais mais experientes, de que se destacava Pedro Muralha[4], passou quase todo o ano de 2008, no pouco tempo em que conseguiam libertar-se do trabalho, a discutir o projecto de estatutos da Associação de Classe, a recolher pré-adesões, e a organizar os aspectos administrativos mínimos necessários ao seu funcionamento.

No dia 5 de Novembro de 1908, foram os trabalhadores dos hotéis Francfort, Inglaterra, Pension, Porto e Hotel das Nações, a que mais tarde se juntaram trabalhadores de restaurantes e cafés, os que mais contribuíram para que a sala estivesse repleta no acto formal da constituição da Associação de Classe[5] dos Empregados dos Hotéis e Restaurantes, cuja primeira sede foi na rua do Poço Borratém, nº 33, 1º, em Lisboa[6].

Na Assembleia constituinte falaram sobre a origem das associações de classe e a sua importância na defesa dos interesses dos trabalhadores, Thomaz Júdice Bicker e Agostinho José da Silva[7]. E, Manuel Rodrigues Correia, cozinheiro e líder do Grupo de Defesa, sobre as condições de trabalho e de exploração a que a classe estava sujeita.

Nos seus estatutos, a associação define como âmbito geográfico a cidade e arredores de Lisboa, atribui todos os poderes à assembleia-geral e à Comissão Executiva, prevê a constituição de Comissões de Vigilância e de Melhoramentos, a idade de admissão para sócio aos 16 anos, podendo 10 associados requerer a convocação da assembleia-geral.

O artigo 3º dos estatutos define que a associação tem por fim melhorar a situação da classe, pelo estudo e defesa dos seus interesses económicos e morais e poderá ter escolas, gabinete de leitura, e fomentar conferencias”.

 Em fase posterior, com a associação já consolidada, num dos muitos apelos à filiação que regularmente eram feitos no jornal, numa concepção que nada deve ás melhores que hoje existem, pode ler-se: «é necessária a associação de todos os membros da classe, sem restrição, sejam Maitres de Hotel ou Chefes de Cozinha, Criadas de Quartos ou Moços de Recados».

 

 

[3] Vieira, Alexandre, Para a História do Sindicalismo em Portugal, Lisboa, Seara Nova, 1970 p. 29

 

[4] António Pedro Muralha, tipógrafo impressor, veio a ficar conhecido como jornalista e publicista. Foi director do diário socialista, A Vanguarda.

 

[5] Os nomes Associação de Classe, Sindicato ou simplesmente Associação, aparecem ao longo deste trabalho com o mesmo significado.

 

[6] A Defesa, nº 1 de 1 de Janeiro de 1910 fl. 1

 

[7] Companheiros de Azedo Gneco na ala Marxista do Partido Socialista.

 

 

DEIXAR DE PAGAR PARA TRABALHAR – AS PRIMEIRAS GREVES

Estavam fartos de pagar para trabalhar. Os $900 réis que os sete criados de mesa pagavam por dia a D. Pedro Torres, um galego rico dono do Café Suisso, somados, davam por mês de 189$000 réis. Era muito dinheiro. No princípio de Agosto de 1909, quando o gerente do café, conhecido entre os trabalhadores como o‘Salmonete’, os intimou a pagar mais 1$700 réis cada um, relativos a lavagem de roupa, de três dias, recusaram-se a faze-lo.

 A receptividade que tivera o manifesto a reclamar que não os obrigassem a pagar 50% do produto das gorjetas, distribuído em Julho nos cafés da Baixa de Lisboa, a clientes e trabalhadores, tinha-os animado. Ás três da manhã, hora de encerramento do Suisso, combinaram todos não ir trabalhar no dia seguinte. Dito e feito. Nenhum falhou.

Logo de manhã foram para a Associação e pediram a sua intervenção no conflito. Foi eleita uma comissão constituída por três elementos da direcção da Associação e três dos trabalhadores e pediram uma reunião com D. Pedro.

Era a primeira vez que os dirigentes e activistas presentes se confrontavam cara a cara com um patrão para negociar. Que sustentavam conversa, e fundamentavam razões, com um burguês. Mas, sem chegarem a acordo.

Face ao impasse negocial, a Comissão saiu das negociações e dirigiu-se aos jornais diários de Lisboa onde contou as suas razões. Tiveram mais apoio do que esperavam. Torna-se publico que os patrões das casas com algum luxo, não só têm quem os sirva de graça como ainda quem lhes pague certas despesas e reparta com eles a generosidade dos clientes. Muitos jornais publicaram artigos a condenar D. Pedro e o seu acólito ‘Salmonete’.

Entretanto, a classe foi convocada para reunir e decidir que medidas de acção colectiva e de solidariedade levar a cabo. Ao mesmo tempo, a Associação voltou a oficiar D. Pedro, instando-o a encontrar-se uma solução honrosa.

Alguns grevistas foram substituídos devido à traição de alguns companheiros.

Às oito e meia da noite do segundo dia de greve já era grande a afluência de trabalhadores na sede da Associação, e a reunião ia começar, quando chegou a resposta de D. Pedro a pedir uma delegação da Associação e outra dos empregados em greve para que se possa falar e chegar a um acordo.

Os trabalhadores remeteram então uma decisão sobre a última proposta para a Associação que, atendendo a que já havia seis traidores a trabalhar no café, propôs um compromisso que implicava não haver represálias sobre os trabalhadores, e a entrada ao serviço nas condições da última proposta do patrão, que propunha que em vez de 900 réis por dia os trabalhadores pagassem apenas 400. Foi redigido um documento, com as condições acordadas, e assinado pelas partes. Terminou assim, a primeira greve e a primeira negociação colectiva dos trabalhadores de hotelaria, em Lisboa.

Regressada à sede da Associação, a Comissão Negociadora foi ali recebida por uma multidão de sócios que não tinham arredado pé, satisfeitos com o resultado da luta.

Passados oito dias, D. Pedro, que pusera a sua assinatura num acordo em que se comprometia a não exercer vinganças, falta à palavra dada, e despede um trabalhador.

Os trabalhadores voltaram à greve, desta vez pela readmissão do trabalhador despedido.

A luta no Café Suisso prolongou-se até ao fim do ano, com a continuação de muitas manifestações de solidariedade. Na maior de todas elas, concentraram-se mais de mil trabalhadores frente ao café, que não ficou com um único cliente lá dentro, apesar de estar bem guardado pela polícia, que seguiu os trabalhadores com um piquete armado, na volta que deram ao Rossio, e que terminou no Largo de S. Domingos, após intervenções dos dirigentes sindicais.

Foram recebidas mensagens de solidariedade da Associação de Classe dos Empregados dos Hotéis, Cafés e Restaurantes do Porto. Do Comité Nacional dos Camareros, Cosineros, Reposters e Similares de Madrid, que informavam o que se passava em Espanha com o mesmo patrão. Do Centro Cosmopolita do Rio de Janeiro[8] e de inúmeras associações de Lisboa cujos dirigentes se deslocavam diariamente junto dos grevistas.

Os trabalhadores foram reintegrados no princípio de 1910. Anos depois, este café foi dos primeiros a deixar de cobrar parte das gratificações aos seus trabalhadores.

Ainda estava fresca na memória a luta do Suisso, os trabalhadores do Café Martinho abandonam colectivamente o serviço, numa acção em que os próprios dizem ser de despedimento, os patrões apelidam de greve, e a Associação considera um conflito de trabalho.

O motivo foi o aumento da parte das gorjetas que teriam de dar ao patrão, e a imposição da polivalência aos Empregados de Mesa, exigindo-se-lhes que fizessem também o trabalho de moços de copa.

Este conflito, cheio de peripécias, que incluíram a contratação de pessoal no estrangeiro a quem o proprietário, além de deixar ficar com as gorjetas, ainda teve de pagar ordenado, contribuiu para aumentar o clima de agitação na vida dos cafés da Baixa.

 A intervenção enérgica da associação de classe em defesa dos trabalhadores, trouxe-lhe prestígio e fez aumentar acima das três centenas o número de associados.

 

[8] Associação de Classe dos Trabalhadores dos Hotéis, Cafés e Restaurantes do Rio De Janeiro.

 

A LUTA PELO DESCANSO SEMANAL – UMA VIAGEM AO NORTE

A lei do descanso semanal, de 7 de Agosto de 1907, elaborada por um governo despótico que apenas quis esvaziar a contestação social e ao mesmo tempo, tentar atrair, de momento, as boas graças dos trabalhadores, sem prejuízo dos patrões, acabou por se revelar uma burla. Na hotelaria, contam-se pelos dedos os que têm um dia descanso por semana. Em regra, só por favor e a pedido, é que se consegue de tempo a tempo, um dia, para tratar de questões pessoais urgentes. Nas duas ou três casas onde já se cumpre o descanso semanal, este só é concedido aos empregados de mesa. Aos cozinheiros, moços e copeiros, a quem os patrões têm de pagar um pequeno salário, o descanso não é concedido.

Na assembleia ordinária da Associação de Classe onde foram aprovadas as contas e eleitos os corpos gerentes para o ano de 1910, foi decidido que este ano seria um ano de luta pelo descanso semanal. Por isso, foram também eleitas na assembleia uma Comissão de Melhoramentos, para proceder à acção reivindicativa e Comissões de Vigilância, para cada um dos quatro bairros de Lisboa, a fim de fazerem a fiscalização da aplicação da lei.

No dia 15 de Agosto de 1910, realiza-se em Lisboa uma Reunião Magna[9] com o objectivo de discutir a maneira de levar à prática o cumprimento de lei de 7 de Agosto de 1907. Nessa reunião, muito participada, é aprovada por aclamação uma petição a ser entregue ao Ministro do Reino. Foi também aprovada a ida de uma delegação ao Porto e a Braga para discutir com os camaradas do Norte a sua participação na luta.

No dia 21 Agosto, realiza-se a Reunião Magna de Braga com a participação dos delegados idos de Lisboa, que foram convidados a presidir. Também ali a petição foi aprovada por unanimidade.

Dia 22, quando a delegação chegou à sede da associação do Porto, na rua dos Lavadouros, nº 12, 1º,eram quase 2 horas da manhã, num vasto salão todo iluminado a electricidade, que deslumbrou os lisboetas, esperava-os uma grande assembleia. Nessa assembleia, estavam dirigentes das associações dos Tintureiros, das costureiras e Alfaiates e da UGT do Porto, que intervieram. Foi lida a petição já aprovada em Lisboa e Braga, e António da Cunha Magalhães, Presidente da Associação do Porto, foi ovacionado quando terminou a sua intervenção, dizendo: ‘Lutaremos enquanto tivermos força, porque lutando, sentimo-nos ‘ felizes’.

A petição foi aprovada por aclamação, e no fim, os dirigentes de Lisboa foram feitos sócios de mérito da associação do Porto.

A assembleia terminou às 4 e 35 da manhã.

No texto da petição, demonstra-se que o cumprimento do descanso semanal dará trabalho a muitos desempregados e que uma das razões porque os patrões não dão o descanso, é precisamente para não terem de admitir mais trabalhadores. Pede-se a intervenção do ministro.

No dia 31 de Agosto, a carta com a Petição, é entregue ao Conselheiro Teixeira de Sousa, Presidente do Conselho de Ministros do Reino.

O advento da República a 5 de Outubro, aumentou as expectativas sobre a solução do problema e passados os primeiros dias de euforia, os activistas reiniciaram a via-sacra das diligências, junto do novo poder.

A 22 de Novembro, entregam ao Governo Provisório uma petição para que a classe seja inequivocamente abrangida pela nova lei do horário e do descanso, em preparação.

Ao Ministro do Interior da República, levam uma exposição onde esclarecem as razões porque é que a lei de João Franco tem sido letra morta para a classe. E voltam à carga com a denúncia do roubo de parte das gorjetas pelos patrões.

Propõem que na nova lei em preparação, se proíba o desconto do salário, da dormida e da comida, relativo ao dia de descanso, e que lhes seja concedida licença para ir casa nesse dia.

Aos deputados constituintes e à Comissão de Trabalho da Assembleia da República, propõem que os estabelecimentos hoteleiros sejam obrigados a encerrar às 2 horas, para que não tenham de trabalhar até às três quatro da manhã, sem receber qualquer compensação por isso. Avançam ainda com a ideia revolucionária de os estabelecimentos poderem encerrar alternadamente, por bairros, elaborando-se para o efeito um mapa controlado pelas autoridades.

O patronato também se movimentava afanosamente, para evitar que a lei os venha a abranger. Numa reunião realizada na rua do Arsenal, com mais de 400 participantes, discutem as formas de fazer oposição à sua aplicação no sector.

Os primeiros meses de 1911 foram meses de intensa actividade. As represálias do patronato começavam a fazer-se sentir sobre os dirigentes da Associação. Manuel Rodrigues Correia e Joaquim de Almeida Duarte, companheiros de luta desde há quatro anos, foram vítimas de perseguição por causa do descanso semanal. Impuseram-no nas casas onde trabalhavam, e acabaram por ser despedidos. Mas isso não os impedia de continuarem a luta.

No dia 26 de Janeiro, a Associação promoveu uma grande Reunião Magna de trabalhadores no vasto salão da Juventud Galicia[10] com o objectivo de fazer propaganda do dia de descanso. Nesta reunião foi eleita uma comissão de 21 elementos, para se entender com as Juntas de Paróquia, para que estas indiquem os estabelecimentos existentes nas respectivas áreas a fim de serem fiscalizados.

Foi também aprovada a realização de um grande comício público para nele se demonstrar porque é que os trabalhadores de hotelaria não podiam a ser considerados ‘domésticos’. Porque dizer ‘criado’, era o mesmo que dizer escravo. Era preciso rejeitar o epíteto e a condição.

A nova Lei do descanso semanal da Republica foi publicada a 9 de Março de 1911. Saiu defeituosa, com partes omissas, escaninhos por onde sorrateiramente os manhosos, os burgueses, podiam fugir. Remetia a sua regulamentação para as câmaras municipais, o que era um perigo.

Mesmo assim, era melhor que a anterior. Dava competência ás associações de classe para a fiscalizarem e remeterem as respectivas contravenções para o juízo competente, podendo constituir-se em parte acusadora. Introduzia o princípio de a renúncia ao descanso não poder produzir efeito em juízo.

No dia 10 de Março, a Câmara municipal de Lisboa aprova a regulamentação para o seu âmbito, e alguns patrões combinam encerrar para descanso do pessoal, no primeiro Domingo após a entrada da lei em vigor. Nesse dia histórico, apenas os Restaurantes Estrela de Ouro e Vigia, cumprem a palavra. Os restantes estabelecimentos mantiveram-se abertos.

A 20 de Março, dia de Greve Geral em Lisboa, de solidariedade para com os trabalhadores de Setúbal, vítimas da repressão policial que causou dois mortos, vários feridos, e fez várias prisões, os activistas do sindicato de hotelaria distribuíam um suplemento do jornal sobre o descanso semanal, no Chiado, quando um oficial do exército prendeu um deles e o levou para o Governo Civil.

A jovem República iniciava a sua sanha persecutória contra os trabalhadores.

«Os Governos, incapazes, pela sua condição de classe, de reconhecer a verdadeira natureza de todo o conflito social, viam na agitação popular o surto de conjuras contra a República, caluniavam militantes operários de conluios com os monárquicos e reprimiam todos os movimentos reivindicativos ou de protesto com uma brutalidade que, por vezes, imprimia às lutas de classes aspectos de guerra civil.»[11]

No dia 30, os patrões rejubilam. A Câmara Municipal de Lisboa cede à pressão e altera o regulamento, para que em vez de 24 horas seguidas para o descanso semanal, como prevê a lei, passe a poder ser repartido em períodos de 12 horas, nos restaurantes, casas de pasto e de comidas e bebidas.

O Hotel Avenida Palace cumpre a lei, e já admitiu mais três criados para o conseguir. Outros hotéis se lhe seguiram. Alguns cafés fazem o mesmo.

 Na Associação elabora-se uma escala que garante a permanência diária na sede, de um dirigente, das 3 ás 5 da tarde e das 9 ás 11 da noite, para dar esclarecimentos sobre a lei.

É um corrupio de trabalhadores a quererem saber como proceder para terem direito ao descanso. Mas, após informados, verifica-se também que há muitos que dizem não querer o descanso semanal.

O facto de o único vencimento de muitos ser a comida, a dormida, e as gorjetas, e de se verem perante a circunstância de no dia de descanso virem a ficar sem aquelas remunerações, justifica a renúncia, embora pesarosa, ao direito.

Em Lisboa, Campos Lima[12], grande defensor da causa operária, é nomeado advogado da Associação, com o ordenado de 100$000 réis por ano.

As principais casas já se vergaram, mas há muitos conflitos. Em 8 de Agosto, dá-se o primeiro julgamento, relativo ao caso de um Marcador de Bilhares, num botequim da Rua do Jardim Regedor, propriedade de D. Pedro Gonzalez Torres, o célebre dono do Suisso. O sindicato ganha a causa. O regulamento da CML permite o descanso em duas partes de 12 horas para os restaurantes e casas de pasto, mas não para botequins. A sala do tribunal, repleta de sócios, regozija com a decisão do juiz.

Em Setembro de 1911, é aprovado em Assembleia-geral o primeiro Caderno Reivindicativo formal da Associação, em seis pontos:

1 – Não permitir que os patrões possam locupletar-se com as gorjetas.

2 – Exigir que a alimentação seja obrigatória, bem condimentada, fresca e abundante.

3 – Que os dormitórios reúnam condições higiénicas, e que cada empregado tenha a sua cama e seja asseada.

4 – Que a lei do descanso semanal seja fielmente cumprida.

5 – Que as repreensões por faltas, sejam feitas com recato e nunca à frente dos fregueses.

6 – Que nas casas onde as gorjetas sejam individuais passem a ser distribuídas colectivamente.

Nos periódicos de Lisboa, sai a notícia da constituição da Associação dos proprietários de Hotéis Restaurantes e Cafés. Quatro anos depois dos trabalhadores, os patrões organizam-se em associação. Mas a conquista do princípio do dia de descanso semanal pelos trabalhadores é irreversível.

 

[9] Assembleia de importância máxima para onde são convocados sócios e não sócios da Associação.

[10] Colectividade galega muito activa e progressista à época.

[11] Canais Rocha, Francisco, «Luta de Classes na I República» in O Electrão, Jornal dos Trabalhadores das Industrias Eléctricas, de Outubro a Dezembro de 2004

[12] Campos Lima, João Evangelista – Pertenceu à Comissão Organizadora do Congresso Cooperativista e Sindicalista de 1909. É autor de diversas obras, entre as quais, A Questão Social, e O Movimento Operário em Portugal. Recusou ser Governador Civil de Braga e Ministro da Justiça.

 

A CLASSE E A REPÚBLICA

Em Setembro de 1910, a cintura industrial de Lisboa estava em ebulição, paralisada por greves dos corticeiros, dos tanoeiros, garrafeiros e de outras classes.

A opinião pública espantava-se com a capacidade de organização dos trabalhadores em luta. Sabiam utilizar o telégrafo e as comunicações permitidas pelo comboio para se manterem em contacto e coordenar a sua acção.

Os corticeiros, entre outras reivindicações, exigiam o fim da exportação da cortiça em bruto e milhares de operários de 30 fábricas de cortiça concentraram-se no Terreiro do Paço, frente ao Gabinete do Chefe do Governo do Reino, Conselheiro Teixeira de Sousa, que acabou por ceder às exigências dos grevistas. Pouco depois foram os tanoeiros do Poço do Bispo que ocuparam o Terreiro do Paço, obtendo parte das suas reivindicações, incluindo a exigida protecção alfandegária.

A luta dos trabalhadores atingia um grau de politização até aí inédito em Portugal.

No Barreiro, a Companhia União Fabril (CUF) parou totalmente, o comércio fechou, e os grevistas passaram à acção directa mais aguda. Destruíram três quilómetros de linha-férrea, deitaram fogo a depósitos de cortiça e obrigaram a policia a refugiar-se na estação dos correios. A vila esteve por algum tempo nas mãos dos grevistas.

Em Lisboa, os operários da Carris e da electricidade arrancavam para a greve.

A Classe, na hotelaria, com uma associação ainda muito jovem, e com muito menor grau de organização e unidade, em comparação com o operariado coeso dos corticeiros e dos tanoeiros, por exemplo, apesar das suas características mais dispersas por cafés restaurante e hotéis da cidade, encontrava-se profundamente empenhada e mobilizada na luta pela conquista do descanso semanal.

Com a implantação da Republica, no dia 5 de Outubro de 1910, Teophilo Braga, antigo tipógrafo na juventude, e agora eminente professor e escritor, é nomeado Chefe do Governo Provisório e do Estado, até a nova constituição definir a estrutura do poder político.

 António José de Almeida é o Ministro do Interior, que logo no dia 6 de Outubro recebe uma comissão que lhe pede para formar uma Guarda Republicana para defender a Republica, o que ele faz rapidamente a partir da Guarda Municipal existente.

Afonso Costa ocupa a pasta da Justiça, de onde logo no dia 8 saiem os decretos a extinguir as ordens religiosas. Os republicanos atribuíam à Igreja Católica grande parte da responsabilidade pelo atraso de Portugal, e o anti-clericalismo era grande entre a pequena burguesia e as massas populares urbanas. Com a lei do divórcio e da separação entre a Igreja e o Estado, entre outras medidas de sua iniciativa, e o seu estilo hábil e enérgico, Afonso Costa tornar-se-ia rapidamente o politico mais influente da Primeira Republica

‘A República, Enfim. ‘ É com este título que o jornal da classe, A Defesa, de 15 Outubro de 1910, assinala a implantação da República. Não se pode dizer que o entusiasmo seja excessivo. Dizem os camaradas de então no editorial do seu jornal:

«Se bem que a classe trabalhadora não tenha no campo político afirmado as suas ideias por qualquer partido burguês, é com justificado jubilo que recebemos o advento da República, porque ela marca uma primeira “ètape”para as aspirações da emancipação humana.

Os trabalhadores devem por enquanto dar o seu apoio à consolidação da Republica. Afastados os inimigos, daqui a alguns meses, criar um forte partido. Fazendo aos governos republicanos o que os republicanos foram para a Monarquia.

Construir sólidos sindicatos, agrupá-los numa grande confederação que estabeleça relações com organizações operárias estrangeiras que trabalhem em comum para o aniquilamento do capital e o início de uma sociedade sem famintos.

…Não esperar de braços cruzados…A República é um Estado Burguês, por mais perfeito que seja, esmaga os pequeninos, dando aos ricos o melhor quinhão no banquete da vida.

Preparem os trabalhadores, aquilo que Marx disse. Não serão os catedráticos que os emanciparão do capitalismo.»

Não há qualquer outra referência à Revolução do 5 de Outubro neste número do jornal que continua a tratar dos assuntos que vêm de trás da mesma forma.

 Por esta altura, está em preparação avançada a festa do segundo aniversário da Associação, a 5 de Novembro.

Estiveram presentes nas comemorações e intervieram, representantes das associações dos Caixeiros, Manipuladores de Pão, Vendedores de Leite, Costureiras e Ajuntadeiras, União da Construção Civil, Tipógrafos e da Juventud Galicia. As associações congéneres do Porto e de Braga enviam saudações.

O camarada dos tipógrafos apresentou uma moção que saúda o ex-colega Theófilo Braga, lembrando-lhe a lacuna do 1º de Maio, na relação dos feriados obrigatórios.

Foi também saudada a participação do amigo Pedro Muralha, na Comissão nomeada pelo Ministro do Interior, António José de Almeida, que até ás Cortes Constituintes tem como missão analisar os conflitos entre trabalhadores e patrões.

O Presidente da Associação fez um apelo ao Presidente da República para que a classe fosse abrangida pela nova lei do horário e do descanso semanal, e terminou com vivas à unidade da classe operária.

A sessão solene foi abrilhantada pelo Sexteto Mozart, que participou gratuitamente.

A orquestra tocou pela primeira vez os hinos da Associação e de A Defesa, terminando tudo eram quatro da manhã.

Algum entusiasmo momentâneo pela Republica resfriaria rapidamente entre os trabalhadores passado um mês após o advento.

Quando Manuel de Arriaga foi eleito primeiro presidente constitucional da República, o comentário escrito da Associação é elucidativo. Dizem os camaradas: «Não nos importava que o Presidente fosse Sancho ou Pança. O que era preciso era terminar com a graciosa farsa em que o elogio de um candidato é o amesquinhamento de todos os outros. A República não pode sobreviver sem valorizar o trabalho e esse não é o caminho que leva.

Já houve a lei de imprensa, do inquilinato e a do divórcio. Uma quantidade de coisas. Mas condições de trabalho, protecção ás mulheres e menores, assistência pública, nem vê-las. Apenas a esburacada lei do descanso semanal.

Nada há a esperar dos camaradas que sonham com as cadeiras ministeriais, mas sim das nossas próprias forças.»

 

A VITÓRIA DOS BIGODES

O anseio de libertação do estigma de ‘criado doméstico, de dignificação profissional, e de elevação no estatuto social, já tinha levado alguns empregados de mesa a fazer greve, e outros a deixar de se empregar por os quererem obrigar a cortar o bigode.

Foi por isso natural que a leitura de El Syndicato – órgão dos criados de mesa de Buenos Aires – onde os camaradas denunciam «alguns maricas que assentam em cortar o bigode para servir certas pessoas nobres que agora visitam a Argentina» tivesse servido de faísca para a tomada de medidas na Associação.

A questão foi debatida, seguida da eleição de uma comissão para ir conferenciar com todos os proprietários de hotel, no sentido de os levar a abdicar da humilhante exigência do corte do bigode aos seus empregados.

Na assembleia seguinte, a Comissão informa que os hotéis Continental, Duas Nações, Europa, Borges, Aliança, Bragança, Central e Durand, aceitam que os empregados possam usar bigode. Acrescentam ainda que a proprietária do Durand, uma cidadã francesa, fora de uma delicadeza extrema para com a Comissão, dizendo-lhes que ao único empregado que tinha sem bigode, mandaria nesse mesmo dia que o passasse a usar.

Ao fim de dois meses de negociações, a Comissão do Bigode apresentou-se na Assembleia-geral e comunicou que tinha chegado a acordo com todos os hotéis de Lisboa, incluindo os renitentes Avenida Palace e Fracfort. A Partir do dia 20 de Dezembro de 1910, todos podem passar a usar bigode.

É proposto o envio de uma carta a todas as empresas a dar conhecimento do acordo colectivo, são felicitados os camaradas que já usam bigode, e feito um apelo à unidade daqueles que ainda o não usam, incitando-os a passar a usufruir desta nova regalia conquistada pela classe.

Pouco tempo depois, os camaradas do Grand Hotel de Itália, no Monte Estoril, escrevem à Associação a saudar a grande vitória alcançada em Lisboa, e pedem a sua intervenção no Estoril, onde ainda persiste a maldita praxe do bigode rapado. Só no Grand Hotel de Itália é que todos usam bigode, dizem: nesta quadra de frio e vento, têm 70 hóspedes, enquanto os demais têm 7 ou 8. Já se vê pois, que não é pelo facto de os criados usarem bigode que os hóspedes deixam de frequentar as casas. Não tendo que estar sob o regime humilhante, nem de se disfarçar de ‘manequins’ para servir os clientes.

Em Maio desse ano de 1911, na época das contratações para as termas e praias, chegou aos ouvidos da Associação, que o Sr. Conselheiro, dono do Hotel Palace de Vidago, exigia em contrato, que os criados de mesa cortassem o bigode.

 Em reunião com o grupo que se preparava para ir trabalhar para o Sr. Conselheiro, os elementos da Comissão do Bigode, esclareceram a posição da Associação: – Sabemos que alguns camaradas se têm recusado a fazer contrato para não terem de cortar o bigode. Não queremos fazer grande cavalo de batalha sobre o assunto, visto que, depois de uma regalia adquirida para uma classe, os que foram beneficiados, não devem em princípio, desistir dessa regalia, que tantos esforços custaram à Associação.

Vidago não é assim uma mina tão invejável que seja preciso fazer-se tão grande sacrifício, para se ser um simples empregado de mesa de uma empresa cujos lucros são para aqueles que, retorcendo o seu grande bigode, e repimpados na sua poltrona, não querem conceder aos empregados o uso de um adorno com que a natureza os dotou.

Pela nossa parte, aconselhamos todos a não aceitar a imposição. Porque será assim que vencerão a causa. E então, veremos os hóspedes do Palace Hotel ser servidos por um criado sem bigode, chamado ‘Conselheiro’.

Hoje, em tempos em que a cara rapada leva a palma ao uso do bigode, podemos achar exótico, tanto ardor e luta pelo uso do famoso adorno capilar. A verdade é que naquele tempo foi uma conquista que dignificou os trabalhadores e a sua associação de classe. Deu origem ao segundo processo de negociação colectiva conhecido, em Lisboa. E, nos anos que se seguiram, sempre que era caso de enumerar as regalias conquistadas, lá estava nos primeiros lugares a regalia do bigode.

 

UM SINDICALISMO REIVINDICATIVO E REVOLUCIONÁRIO NA REPÚBLICA

Entre os activistas fundadores do sindicato existiam elementos de todas as correntes politico-ideológicas da época, como é natural. Socialistas, ligados ao Partido Socialista, Sindicalistas Revolucionários, adeptos dos princípios estabelecidos na Carta de Amiens pelos sindicalistas franceses em 1906, e Anarquistas.

Claro que a maioria dos trabalhadores e mesmo muitos activistas, não tinham partido nem ideologia definida. Acompanhavam os que a tinham e que predominavam em cada situação.

No período da fundação, o que escreviam, as discussões e reivindicações que faziam e na acção que desenvolviam, predominavam as ideias de revolução social, de combate ao capital e às instituições burguesas. O ideal de uma sociedade sem explorados nem exploradores.

Karl Marx era o teórico mais citado e o que permanece ao longo do tempo, mas também Kropotkine, de quem publicam no jornal, em folhetins, «As Prisões». E ainda, Bakunine, Malatesta, Bebel, Victor Hugo e Emílio Zola, entre outros.

O nº 1 do jornal da classe, A Defesa, de 1 de Janeiro de 1910, imprime como divisa, no rodapé da primeira página, a definição de Marx: ‘o capital é o trabalho não pago’.

A linha mais influente no sindicato, entre 1907 e 1914, foi a dos sindicalistas revolucionários, com uma pitada de anarquismo e outra de reformismo. Foram desde o início avessos à participação dos partidos enquanto tal na vida sindical.

O cooperativismo e o mutualismo também estão presentes desde o início, e entram mesmo pelo período fascista adentro. As cooperativas são apresentadas, quer como formas de organizar a solidariedade quer como formas de libertação e de transformação da sociedade. E, ás vezes, sob a forma utilitária de arranjar trabalho para os perseguidos por questões sociais, ou de combate à especulação e ao açambarcamento de géneros. Foram constituídas algumas a longo do tempo, embora sem grande sucesso.

A educação como caminho para a libertação era outra ideia constante: Da divulgação da instrução entre a classe nascerá a consciência colectiva que saberá defender e defenderá os direitos. Entre esses direitos avulta o descanso semanal.

A solidariedade de classe e humana são um traço forte e permanente nas práticas da Associação. Em Janeiro de 1910, solidarizam-se com os trabalhadores da Câmara Municipal de Lisboa que lutam contra o trabalho à tarefa e de empreitada, por ser precário, e fazem uma subscrição de fundos para enviar aos pescadores da Afurada cujos barcos foram destruídos por um vendaval. Os trabalhadores do Hotel Borges angariam 5$200 réis para um camarada doente. Em Junho, vendem bilhetes de solidariedade a 100 réis, para um sarau na sala dos tipógrafos, a favor dos tecelões do Porto, em greve.

Para os corticeiros de Almada em greve e com um dirigente preso, a Assembleia-geral decide enviar dinheiro e comida.

Mais adiante, solidarizam-se com o Dr. Kotoku, sua companheira e mais doze camaradas, executados no Japão por espalharem doutrinas de emancipação humana, e com dezasseis marinheiros que no Brasil se revoltam contra os castigos corporais, e foram assassinados pela fome em masmorras imundas.

As práticas associativas são também as de todo o movimento sindical da época. Realizam assembleias-gerais quase todos os meses, onde participam regularmente entre 60 e 90 associados. E, grandes reuniões magnas de protesto, ou para decidir as lutas, abertas a todos os trabalhadores, mesmo não associados, em que chegam a participar centenas.

Há eleições para os corpos gerentes e para a comissão de melhoramentos, todos os anos em Janeiro. A rotação é grande. Por vezes os activistas mais prestigiados na classe não fazem parte dos órgãos eleitos, mas continuam a exercer a sua influência através da participação nas assembleias e do que escrevem no jornal.

Foi pois sem grande conflituosidade entre si, que em 4 de Julho de 1909, abandonaram a Sala Algarve da Sociedade de Geografia, onde decorria a sessão inaugural do Congresso Nacional Operário, presidido por Azedo Gneco. Como sindicalistas, discordavam da participação de delegados pertencentes ao Partido Socialista e entendiam que só deveriam participar delegados das associações de classe e das cooperativas e mutuas no congresso.

Por isso, saíram com a corrente minoritária e vieram a participar no Congresso Sindical e Cooperativista de 1909, cuja última sessão, a vigésima, se realizou na sede da Caixa Económica Operária, à Graça, em Lisboa, a 6 de Janeiro de 1910.

Os ideais de emancipação, a melhoria das condições materiais e de bem-estar, a educação e a solidariedade, a luta directa sem interpostas pessoas para realizar estes fins, o reforço associativo e as formas de organização, associações de classe ou sindicatos, federações de indústria e de ofícios, uniões de sindicatos e Confederação Geral do Trabalho, constam das teses aprovadas neste congresso.

«De facto, o embrião de princípios e fins políticos, ideológicos e de organização e acção, que ainda hoje prevalecem no movimento sindical português, com naturais desenvolvimentos e aperfeiçoamentos, evidentemente».

Ao apreciar as teses do congresso, em reunião da Comissão Executiva da Associação, considera-se terem sido discutidas questões importantes para a classe, mas ao mesmo tempo, lamenta-se de forma corrosiva, que não tenha deixado de ser como outros congressos que se têm realizado no país: congressos um pouco sport, em que se exibem determinados cabotinos e outros parvenus, sedentos de celebridade social, e de verem estampados os seus obscuros nomes nas gazetas de grande circulação, salvo as excepções, claro.

Estavam magoados com alguns camaradas operários, que os consideram burgueses: só se fosse por usarem smoking e luvas brancas no trabalho. Eram apreciações parvas e muito injustas que iriam combater. O facto de não usarmos fato de macaco não faz com que sejamos menos operários do que eles, dizem.

Quando a República foi proclamada no dia 5 de Outubro de 1910, Lisboa e os seus arredores estavam numa grande ebulição social provocada pelas greves e manifestações operárias, que exigiam melhores salários e redução do horário de trabalho.

A queda da Monarquia e o benefício da dúvida dado pelos operários ao novo regime republicano acalmaram os ânimos e alimentaram expectativas durante algum tempo. Mas não tardou que as ilusões se desvanecessem. Os activistas sindicais perceberam rapidamente que, mesmo com os republicanos, que enchiam a boca com palavras como justiça social e se afirmavam socialistas e amigos dos operários, os direitos e a melhoria das condições de trabalho não cairiam do céu. Tinham de lutar para os obter.

Em Janeiro, inicia-se a fase preparatória do congresso sindicalista de 1911.

 Para este Congresso, que tinha ficado desde logo convocado pelo de 1909 para o ano seguinte, ano em que não se realizou devido à implantação da Republica, foram eleitos como delegados da Associação, Luciano Gil Montes e Manuel Fernandes Lopes, e Manuel Rodrigues Correia, em representação de A Defesa. Os jornais sindicais tinham direito a estar representados por um delegado.

A Associação declarou a representação de 570 associados[13]. Do Porto participaram a Associação dos Empregados dos Hotéis, Cafés e restaurantes, com 242 associados e a Associação dos Corretores de Hotéis, em representação de 78 sócios[14].

O congresso teve a sua sessão de abertura, dia 7 de Maio, e realizou-se na Sala da Associação dos Tipógrafos à rua de S. Bento. Da ordem de trabalhos constavam três teses:

1-    Princípios Gerais de Organização; 2 – Greves e Arbitragem; 3 – Legislação Operária.

Foi uma festa na Associação pelo facto de Luciano Gil Montes ter sido eleito para a Comissão Executiva do Congresso Sindicalista. Era o reconhecimento pleno da organização dos trabalhadores dos hotéis, cafés e restaurantes, por parte das outras associações operárias.

Bem o merecem, pensam. Participam no Primeiro de Maio todos os anos, e fazem sair sempre um número especial do jornal, em regra todo impresso a vermelho, onde se indicam os locais dos comícios, se homenageiam os mártires de Chicago e relembram os objectivos da luta dos operários americanos e de todo o mundo, em particular os 8x8x8. Oito horas de trabalho diário, oito de lazer, oito para descansar e descanso semanal ao Domingo.

 Aos trabalhadores de hotelaria, que por trabalharem ainda entre 15 e 20 horas diárias não acreditam em tal reivindicação, muitos até rindo-se dela, tomaram eles ter 14 horas e um dia de descanso por semana, lembram que tal horário não é impossível, pois que os camaradas americanos, embora à custa de muita luta, e de muitos mortos e feridos, já o tinham conseguido.

Um dos primeiros trabalhos em que a Comissão Executiva eleita no congresso sindicalista se lançou foi o de promover a constituição, em Lisboa, da União dos Sindicatos Operários[15].

Luciano Gil Montes, na sua qualidade de membro Comissão Executiva do Congresso, propôs na Associação que se filiassem na União, e aceitassem o convite desta para se instalarem na sede conjunta com outras associações de classe. O que foi discutido e aprovado por unanimidade na assembleia-geral. A assembleia atribuiu ainda a Gil Montes a responsabilidade da instalação e exploração de um café na Casa Sindical.

Foi com grande entusiasmo que se lançaram na campanha de recolha de fundos em curso, para apoio à instalação da nova sede, para a qual obtiveram 57$050 réis.

No final do ano de 1911, mudaram-se do Poço do Borratém para a Casa Sindical instalada no palácio onde vivera o Marquês de Pombal, edifico com amplas e numerosas dependências e uma entrada sumptuosa, na Rua do Século, nº 85, ao Bairro Alto. Alem da Comissão Executiva do Congresso Sindicalista e da União, instalaram-se ali mais trinta e quatro associações de classe e os jornais operários A Defesa, O Constructor e O Sindicalista.[16]

A inauguração da Casa Sindical – assim se passou a denominar – fez-se festivamente nos dias 31 de Dezembro de 1911 e 1 de Janeiro de 1912.[17]

Na sessão de inauguração, falaram dois operários espanhóis que haviam sido expulsos de Cuba, grandes oradores, um operário da construção civil francesa e diversos sindicalistas portugueses, entre os quais o primeiro Secretário-geral da União, o tipógrafo José Maria Gonçalves, e pela Comissão Executiva, Carlos Rates, e o advogado da Associação, Dr. Campos Lima.

Nos primeiros dias de Janeiro, desencadeia-se em Évora, uma greve de operários agrícolas contra o desrespeito de uma tabela salarial ainda havia pouco tempo acordada com os agrários. As autoridades respondem à luta dos agrícolas com o encerramento da sua associação.

Face a esta repressão, as associações operárias de Évora proclamam a greve geral no dia 13 de Janeiro, greve que abrange mais de 20000 trabalhadores de ambos os sexos.[18] O Governo encerrou as sedes de todas as associações da cidade e mandou o exército e a GNR carregar sobre os grevistas, ferindo muitos destes e assassinando um trabalhador rural.

Esta acção brutal do Governo da República gerou uma onda de indignação que levou à declaração da greve geral de solidariedade, em Lisboa, no dia 28 de Janeiro. Greve de grande impacto na capital, e que foi seguida em diversos pontos do Pais, particularmente em Setúbal, Montijo e na Moita, onde o Administrador do Concelho foi morto pela população revoltada.

Dias 29 e 30 de Janeiro, Lisboa esteve completamente paralisada, com concentrações e desfiles de operários pelas principais ruas e praças da cidade.

Na noite de 30 de Janeiro, uma autêntica multidão concentrou-se na Casa Sindical, a aguardar notícias do resultado das negociações sobre a libertação de presos e a reabertura das sedes sindicais de Évora.

Nas amplas instalações, na escadaria e por salas e gabinetes, uns dormiam a sono solto, outros tomavam tranquilamente o seu café, outros ainda conversavam ou discutiam animadamente sobre o curso dos acontecimentos.

Traiçoeiramente, o Governo, ao mesmo tempo que negociava com as comissões operárias, deu ordens ao exército para cercar a Casa Sindical, num aparato militar absolutamente desproporcionado que incluía mesmo uma bateria de artilharia.

A porta principal do edifício estava guardada por um piquete de vinte trabalhadores, que tinham como missão principal evitar que algum activista mais exaltado provocasse as forças militares presentes e lhes desse o pretexto para avançarem.

Ás três da manhã, aproximam-se da porta da Casa Sindical dois vultos que param à distância e perguntam em voz alta ao piquete se não querem parlamentar.

Os sindicalistas Alexandre Vieira e Sá Júnior, electricista, destacam-se do piquete e seguem os emissários até ao comandante das forças sitiantes, a quem, depois de instados, declaram estar dispostos a sair da sede sindical, sem deixarem de estranhar que estando uma comissão sindical a negociar com o Governo uma solução para a greve sejam intimados a abandonar a sua própria casa. A esta hora ainda não sabiam que a comissão tinha sido presa.

A comissão sindical, que tinha por incumbência avistar-se com o Governo, foi detida pela tropa.

Ás quatro da manhã, os trabalhadores presentes começam a ser organizados em levas, num aparato militar ridículo por exagerado. Pois de início, de cada lado de um operário, postava-se um soldado armado. A iluminação pública foi apagada e, debaixo de chuva, cerca de 700 homens e mulheres, a cantar a Internacional, são obrigados a sair do Palácio Marquês de Pombal, depois de lhes terem retirado os chapéus-de-chuva e as bengalas, são metidos entre cordões de soldados da GNR, armados de espingardas, e levados para a Penitenciária, para o Limoeiro e para bordo do navio Pêro de Alenquer, fundeado no Tejo.

A bordo do Pêro de Alenquer, que não reunia condições para alojar 100 pessoas, estiveram detidas, durante 15 dias, cerca de 500, tendo parte delas transitado depois para penitenciária e para o Limoeiro.[19]

Luciano Gil Montes e Manuel Correia de Figueiredo, dirigentes sindicais de hotelaria, e José Vasques Montes, também pertencente à classe, fizeram parte da leva de camaradas que foram presos, e estiveram na Prisão do Limoeiro, 39 dias, sem culpa formada.

A direcção da Associação convoca uma reunião de emergência para a rua da Rosa nº 25, para se decidir o que fazer face ao encerramento da sede e à prisão dos camaradas. Nessa reunião é rejeitada a acusação infame do Governo, de que a greve geral era reaccionária e Pró-Monárquica. É repudiado o encarceramento de honrados trabalhadores, nas enxovias, juntamente com facínoras de toda a espécie, e aprovada a ida para uma pequena instalação provisória na Rua do Ferragial de Baixo, nº12. Decide-se fazer um abaixo-assinado, a exigir a libertação dos presos e uma subscrição de angariação de dinheiro para apoiar os camaradas presos no Limoeiro e as suas famílias. A classe correspondeu em peso com a solidariedade, e até alguns patrões fizeram questão de assinar os documentos e de contribuir financeiramente. Foram recolhidos 40$800 réis, que foram entregues aos três camaradas presos.

No final da primeira quinzena de Março, a Associação festeja a libertação dos três camaradas presos, saudando-os, ao mesmo tempo que invectiva o Governo a garantir um clima de paz para que os turistas e os viajantes frequentem o país, em vez de prender os operários que deram o corpo ao manifesto na Rotunda, pela implantação da Republica.

No fim do mês, o Governador Civil de Lisboa mandou entregar as chaves da Casa Sindical, constituindo-se uma delegação com elementos de todas as associações para os receber, convidando-se a imprensa para assistir ao acto. A delegação, acabou por se transformar numa multidão, que foi assistir à reabertura da sede sindical.

Ao entrarem no Palácio Marquês de Pombal, os activistas deparam-se com um espectáculo degradante: Pelas salas e gabinetes havia montes de papéis e cartas rasgadas, garrafas e cadeiras partidas, portas arrombadas, pias entulhadas, uma autêntica selvajaria. No Bufete, as bebidas, e até os talheres, tinham desaparecido. As instalações dos jornais O Sindicalista e A Defesa não escaparam ao vandalismo da destruição, tendo desaparecido o melhor galeão de ferro zincado que a tipografia possuía.

O sossego foi sol de pouca dura na Casa Sindical. Ainda mal tinham acabado de limpar a casa e restaurar os estragos, com trabalho militante, quando foram alvo de uma acção judicial de despejo por não terem pago a renda, no dia um de Fevereiro, conforme a lei estabelecia. Ora, a renda não tinha sido paga na data certa porque naquela altura os sindicalistas estavam todos presos. Nem por isso houve contemplação, e as autoridades, apressaram-se a fazer cumprir a ordem de despejo.

Os sindicatos tiveram de arranjar outra sede, e no dia 1º de Maio mudam-se para a Rua dos Prazeres, nº 39 a 41 (à Praça das Flores). A Associação e outras, lá foram novamente com a mobília ás costas.

Com a justificação formal de o espaço ser reduzido nas novas instalações, e de estas estarem afastadas da zona onde se encontram os principais estabelecimentos hoteleiros, Manuel Rodrigues Correia, que já tinha feito reactivar com a mesma justificação o andar da rua do Poço Borratém, propõe em Assembleia-geral, a saída da Casa Sindical. Gera-se uma forte discussão entre um grupo de associados que apoia a proposta e outro, em torno de Gil Montes, que está contra, e acusa Correia de querer sair da União.

Vence a proposta de se sair, com a reafirmação de continuidade da filiação na União dos Sindicatos.

É assim que, em Junho, volta a haver mudança de casa, sendo desta vez a nova sede, conjunta com outras nove associações, na Casa do Povo, Travessa da Água de Flor, 55, onde se julgavam mais abrigados da perseguição das autoridades, por não estarem juntos com a união, cuja actividade, mais politizada, dava mais nas vistas.

Aqui ficou instalada a sede, durante cerca de ano e meio, até que a 19 de Novembro de 1913, alguns activistas que como habitualmente se dirigiam à Casa do Povo para abrir as portas, depararam com as portas dos seus gabinetes seladas pelas autoridades.

De imediato uma delegação das diversas associações ali sedeadas dirigiu-se ao Governo Civil, para protestar e pedir explicações. Recebidos pelo Governador, ouviram deste a espantosa resposta: ‘não contem comigo para engolir a ordem que dei. E fiquem a saber que a autoridade quando intervém é sempre brutal’. E não disse qual o motivo por que tinha mandada encerrar as associações. Apenas que tinha cumprido ordens do Governo, o que equivalia a dizer, ordens do irmão.

Afonso Costa, Chefe do Governo, por esta altura já tinha sido baptizado pela opinião pública com o cognome de: o Racha Sindicalistas devido à brutalidade com que mandava reprimir os activistas sindicais.

Na continuação das diligências, conseguiram avistar-se em 6 de Dezembro com o Ministro do Interior, que os informou que num processo que lhe fora presente, as associações instaladas na Casa do Povo constituíam uma união, e que por isso, tinha consultado a Procuradoria da República sobre a legalidade da situação, tendo a Procuradoria respondido que não havia enquadramento legal para a constituição de uniões sindicais. Frisou e refrisou a comissão que as associações eram independentes umas das outras, e que só estavam juntas nas mesmas instalações, porque cada uma por si não tinha meios para ter uma sede. Mas de nada lhes valeu. O Ministro manteve a ordem de encerramento.

No dia 20 de Dezembro, 39 dias após mais esta arbitrariedade, o Governo mandou reabrir a Casa do Povo sem qualquer outra explicação. Mas os activistas sindicais já sabiam o que desencadeara a fúria do Governo. Um bufo tinha denunciado uma reunião da Comissão de Auxilio e Defesa dos presos por razões sociais, na Casa do Povo.

Neste entretanto, a Associação dos Criados de Mesa, Soc. Cooperativa e a Associação de Socorros Mútuos dos Cozinheiros, propuserem à Associação de Classe a instalação numa sede comum. A saga do encerramento e das mudanças de sede não ficava por aqui.

É assim que no dia 5 de Julho de 1914, as três associações do sector hoteleiro viriam a inaugurar a sede na Travessa dos Inglezinhos, 3, 1º em Lisboa, onde o sindicato fica instalado até à imposição do estatuto corporativo pelo fascismo, no final de 1933.

 

[13] O Congresso Sindicalista de 1911 Selecção e Textos de César de Oliveira, Porto, Afrontamento, Novembro de 1971 pp. 35 – 36

[14] Ibidem

[15] Vieira, Alexandre, Op. Cit.  p. 50

[16] A Defesa, nº 47, de 1 de Janeiro de 1912 fl. 2

[17] Ibidem.

[18] Vieira Alexandre, op. cit. p. 50

[19] Vieira, Alexandre, op. Cit. pp 56,57

 

UM JORNAL COMO ARMA

Os militantes sindicais do final do século XIX e princípios do século XX tinham uma concepção profunda sobre a importância da informação e da cultura. Para transpor para o terreno da prática essa concepção, tinham o jornal.

O jornal como instrumento de propaganda do associativismo; de formação ideológica e cultural; de organização e mobilização dos trabalhadores para a luta. O jornal como arma de defesa e promoção dos direitos, divulgando-os, e denunciando a sua violação por parte do patronato. O jornal como arma de luta contra a exploração, pela liberdade e a igualdade de direitos.

A Defesa, órgão quinzenal da classe dos empregados dos hotéis e restaurantes, foi um dos jornais sindicais de maior longevidade deste período áureo do jornalismo operário. O Nº 1 da primeira série saiu a um de Janeiro de 1910, e o Nº 136, o ultimo, em 16 de Maio de 1924. Em segunda série, com Luciano Gil Montes como Director, foram publicados sete números, entre 1 de Abril de 1927, e 1 de Maio de 1928.

 Foi um projecto pensado com todo o cuidado. A ideia da sua fundação surgiu em simultâneo com a da constituição da associação de classe, na cabeça dos mesmos activistas, com o objectivo de intervenção convergente com esta, embora com autonomia administrativa e de direcção politica, como era habitual naquela época.

Para por de pé o projecto, constitui-se o Grupo de Propaganda e Defesa dos Interesses dos Empregados dos Hotéis Restaurantes e Cafés de Portugal, seu primeiro proprietário e um núcleo dirigente, de que faziam parte Manuel Fernandes Lopes, como director, e Manuel Rodrigues Correia, com a designação de Secretário, mas na verdade, o seu ‘homem forte’ durante vários anos. Os mesmos camaradas eram simultânea e respectivamente, presidentes da Mesa da Assembleia-geral e da Comissão Executiva da Associação de Classe.

Foram estabelecidos preços avulso e por assinatura. Angariados assinantes e anúncios e contratados postos de venda. Em Lisboa, na Tabacaria Campos, no Poço Borratém, no Quiosque Sol, ao Rocio, no Kyosque defronte ao Largo de São Domingos, e na Tabacaria Frazão, na Rua do Amparo. No Porto, na Tabacaria Flor do Chiado, na Rua Bonjardim, 406 e em Braga, na rua do Castelo, 50.

A Defesa define como âmbito de cobertura, Lisboa, Porto, Coimbra, Braga e outras cidades do país, tendo nos primeiros três meses atingido as trezentas assinaturas, cem das quais, no Porto. Na Invicta, não há hotel em que o jornal não entre, espalhando a luz. Dizem os fundadores, no número cinco, ao darem conta da sua expansão. Para este êxito contribuiu muito, Custódio Dantas, correspondente, e também presidente da Associação de Classe dos Corretores de Hotel na cidade nortenha.

No primeiro ano já tem permutas com jornais seus colegas, no Brasil, Argentina, Espanha, França, Itália e Suiça.

Ajudaram muito com a sua experiência e colaboração, no primeiro ano do jornal, vários elementos do movimento operário não pertencentes à classe, entre os quais se destacam Azedo Gneco, Pedro Muralha, Thomaz Júdice Bicker e Francisco Christo.

O Grupo Editor reunia regularmente, com a participação de assinantes, e ao fim de doze números concluíram que não conseguiam aguentar o jornal com o modelo inicial, pelo que propuseram à Assembleia-geral da Associação que esta assumisse a sua propriedade e passasse a distribui-lo gratuitamente aos sócios. Proposta que foi aprovada, com apenas dois votos contra. Nesta nova situação, passava a ser obrigatória publicação dos escritos da direcção em exercício na associação, mantendo-se, mesmo assim, a autonomia editorial.

No primeiro número, em editorial assinado pela redacção, estabelecia-se aquilo a que hoje se chama estatuto editorial: «no momento em que todas as classes se agitam reclamando melhorias nas suas condições económicas, vem o nosso jornal defender a classe de que é órgão, espalhando ao mesmo tempo pelos cérebros pouco cultos, jorros deslumbrantes de luz. É nossa missão, por meio do jornal, fazermos a união da nossa numerosa classe, para conseguirmos as nossas justas reivindicações. Constituir um baluarte para nos defendermos dos espoliadores e uma forte organização associativa para todos.

Propõem-se ainda publicar uma tribuna de classes, para tratar das lutas que houver entre o trabalho e o capital, e pôr a nossa classe ao corrente do que se passa em todo o movimento operário.

E assim procedem, desde logo nesse número, com a publicação da posição dos operários sapateiros contra a venda ao público do calçado feito nas prisões, devido à concorrência desleal que tal venda significa, e a sua exigência de que os sapatos feitos à máquina tenham uma taxa de 500 réis, pelo mesmo motivo.

As questões afectivas da vida sempre foram tratadas nele. As alegrias e as tristezas existentes nas casas dos activistas eram noticiadas. Casamentos, nascimentos, baptizados, viagens à terra, visitas da família a Lisboa, etc..

Era dada uma atenção especial à doença, ao falecimento dos entes familiares dos sócios, e estes, quando faleciam, eram em regra homenageados nas assembleias-gerais, e em alguns casos cobertos com a bandeira da associação.

 As festas organizadas em torno dos aniversários da Associação e de A Defesa, os seus programas, o que lá se passava, eram objecto de notícias desenvolvidas. Festas que encheram os teatros Gynasio, o São Luiz e o Politeama, várias vezes. A venda de bilhetes e as receitas dos comes e bebes destes benefícios, como também lhes chamavam, chegou a ter importância para fazer face às despesas da Associação. As obras na sede da Travessa dos Inglezinhos, após o incêndio que ali ocorreu, foram cobertas pela receita de uma festa de benefício.

Mas foi na mobilização e organização dos trabalhadores para a luta por melhores condições de trabalho e de vida, e em defesa dos seus direitos e interesses. Na divulgação da biografia, a negro bem forte, dos patrões não cumpridores, não regateando elogios aos que cumpriam, que esteve quase sempre o cerne das preocupações da redacção de A Defesa.

A Defesa teve alguns interregnos na sua publicação. Quase sempre por razões alheias à classe. Quando do encerramento das sedes pela força bruta do poder de Estado. Quando Manuel Rodrigues Correia Presidente da Associação e seu director partiu uma perna e a clavícula num acidente, e foi parar ao Hospital de S. José durante mais de um mês. Ou quando a sua esposa adoeceu com a tuberculose e acabou por lhe morrer com trinta anos, e teve que ir para a Merceana durante algum tempo tomar conta dos três filhinhos. E ainda, quando este foi mobilizado para a guerra em 1916, período em que o jornal esteve sujeito à censura.

Não se publicou durante alguns meses devido à escassez e ao custo do papel e outros materiais também durante a guerra. Na década de 1920, a sua saída foi muito irregular, com um hiato de três anos entre 1924 e 1927, provocado pela derrocada anarquista após a grande greve de 1924, pela abolição da gorjeta.

Mas, pode dizer-se com toda a justiça, que ao longo dos dezasseis anos da sua existência, cumpriu os objectivos para que foi criada, mesmo nos períodos mais erráticos da sua vida.

 

 DISSOLVENTES, INTRIGA, EXPULSÕES, E UMA LUZ AO FUNDO DO TÚNEL

Com a combatividade, a abnegação, a solidariedade, o idealismo, coexistem a intriga, o oportunismo, a divisão.

O boato lançado durante a greve de que os criados do Café Suisso já estariam dispostos a pagar 50$000 réis cada um, para regressar aos seus postos de trabalho, ou a ida de três «capachos» do patrão do Martinho ao Diário de Notícias, desmentir que não eram explorados, são epi-fenómenos emergentes da luta de classes.

Já o ataque ao Governo por ter tornado obrigatório o descanso semanal, feito pelo «renegado» Ramiro Vidal Carrera, antigo criado de mesa e colaborador de A Defesa e agora sócio de um restaurante onde os empregados dormem na cozinha, e colaborador do Noticiero de Vigo, configura acto de traição premeditada.

Mas nenhum destes episódios causa grandes danos à unidade da classe.

O mesmo se não pode dizer das divergências que começaram com a discussão entre os activistas que defendiam a continuação da Associação na Casa Sindical e os que queriam uma sede própria. Esta controvérsia, que não se fundamenta apenas em paixões de lana-caprina como alguns disseram e escreveram, e tem antes a ver com concepções diferentes para o movimento sindical, conduziu à instalação da divisão, da intriga e do ódio, no seio da Associação.

Manoel Fernandes Lopes, Editor e Director de A Defesa, sem nada escrever nem nada fazer, preenchendo os cargos apenas para efeitos legais, segundo uns, teve a capacidade de iniciativa suficiente segundo outros, para no momento difícil em que a sede estava encerrada, ir à tipografia proibir expressamente a publicação do jornal, sem dar qualquer satisfação à redacção nem à Associação, sua proprietária.

Manuel Rodrigues Correia, redactor principal, que tudo fazia e muito escrevia, conseguiu manter a publicação e, farto de tolerar «traidores», no número seguinte, ataca ferozmente o antigo camarada, acusando-o de andar sempre com o «copos», de ser vaidoso, homem de duas caras,e de ter o hábito de se encostar aos inimigos de classe. Na Assembleia-geral que se seguiu a este episódio, aquele que fora o primeiro presidente da Assembleia-geral, foi expulso da Associação.

Na Assembleia-geral de 9 de Abril de 1912, Luciano Gil Montes discorda da composição da Comissão Executiva eleita, e esta, após a eleição, propõe de imediato uma sindicância ás contas do bufete da Casa Sindical, aos seus empregados, e à Direcção cessante.

Em Junho, o Grupo de Defesa e Propaganda para o descanso semanal é reactivado sob a égide de Manuel Rodrigues Correia, a pretexto do afastamento da actual Casa Sindical da proximidade dos principais estabelecimentos, e instala-se no antigo andar do Poço de Borratém, onde se fazem reuniões de casa cheia, que só esmorecem quando é decidido que os seus participantes paguem uma quota de $200 réis por mês.

Em Agosto, o Redactor Principal de A Defesa, cozinheiro, referindo-se aos criados de mesa, ameaça abandonar a vida sindical activa devido à péssima orientação dada à Associação pelos ‘senhores camaradas de smok e luvas brancas’ que se envergonham de acamaradar com os que usam ‘blusa e carapuça ou vassoura’.

No dia 20 de Novembro, em Assembleia-geral extraordinária, Luciano Gil Montes é o primeiro a intervir, atira-se como «gato a bofe» à Comissão Executiva, trava-se de razões com o Presidente da Assembleia-geral, que é Manuel Rodrigues Correia, fala durante hora e meia, afirma que a saída da Casa Sindical é anti-democrática, dado que foi feita sem prévia consulta à Assembleia-geral. Declara-se perseguido pelos patrões, e agora pelos companheiros, que considera mais déspotas e opressores. No fim, os termos usados por Gil Montes na sua intervenção são considerados pelo Presidente da Mesa, mais próprios das vielas escabrosas de Lisboa, do que duma assembleia-geral da Associação.

A Comissão Executiva considera que a instalação do bufete na Casa Sindical uma grande «calinada», e acusa Luciano Gil Montes de não querer prestar contas à Associação, ao não entregar fogão, nem liquidando dois documentos assinados por si, considerando-se devedor de 14$450 réis. E, termina verberando a «verborreia anarquista» de Luciano, afirma que o ideal que ele diz abraçar, é algo de mais grandioso e belo do que o próprio supõe, e propõe, embora com mágoa, dizem, a sua expulsão da Associação, para bem dos interesses colectivos, dado tratar-se de um elemento dissolvente da associação que urge afastar, consideram.

Apenas o camarada Manuel Correia Figueiredo, que esteve preso com ele no Limoeiro, de chapéu na cabeça em plena assembleia, o que é muito criticado, o defende. A Assembleia votou a expulsão por apenas 4 votos contra e uma abstenção. O próprio Gil Montes votou pela sua expulsão, afirmando que tal atitude era porque não queria contrariar os companheiros.

No número seguinte do jornal, é-nos dada em editorial, a definição de dissolventes: são aqueles que fomentam a discórdia e pretendem a desunião das classes. Que gritam contra tudo e contra todos. Que fomentam a intriga e a desordem. Mas que não apresentam nenhuma ideia nem propostas. Apenas fazem com os seus métodos o desânimo dos fracos e a irritação dos fortes.

No mesmo número vem a notícia do despedimento de Manuel Correia de Figueiredo do Café Lisboa, na Rua de S. Julião. Apesar dos desentendimentos recentes e da expulsão, juntamente com Gil Montes, a Comissão Executiva defende-o, e denuncia o despedimento como uma perseguição a um combatente da Associação.

A polémica com o caso Gil Montes continua nas assembleias que se realizam no primeiro semestre de 1913. O seu inseparável companheiro e defensor, Manuel Correia de Figueiredo, que depois de despedido fora admitido pela Associação como fiscal pago do descanso semanal, é acusado de querer ser empregado, e de ao mesmo tempo querer mandar na Comissão Executiva. Ao que este responde que a Comissão Executiva estava feita com o patronato, pois tem em seu poder mais de cinquenta processos de infracção que não manda para o tribunal.

No fim do ano, Manuel Rodrigues Correia promove uma reunião de cozinheiros, não só dos hotéis e restaurantes, mas também dos de bordo e casas particulares, com o objectivo de constituir uma associação de classe que defenda os seus direitos e interesses. Já que, actualmente, a Associação só trata dos problemas dos criados de mesa, considera.

Inicia-se assim um processo de regresso às associações por profissão, provocado simultaneamente por divergências de concepção sindical e por desentendimentos relacionados com a hegemonia que os empregados de mesa tinham na Associação.

Claro que Manuel Rodrigues Correia é acusado de ser cisionista, de querer dividir a classe. Ao que responde que não, que a nova associação era para somar e não para dividir, pois continuariam a conviver na mesma sede e a cooperar e a agir em conjunto naquilo que fosse comum.

O nome do mais influente dos fundadores, continuará a vir como redactor principal, no cabeçalho de A Defesa, até 2 de Abril de 1919. Ainda virá a ser eleito Presidente da Associação em 1914, após um processo de contestação e demissão da direcção reformista. Mas foi obrigado a demitir-se passados seis meses, para dar assistência à família, devido à doença da mulher. Foi Presidente da Assembleia-geral mais algumas vezes. Mas a sua influência na Associação e no jornal, vai diminuindo progressivamente, não obstante o respeito que os activistas continuam a ter pelos serviços que prestou à classe.

Mais tarde, em 1927, um outro cozinheiro, Presidente da associação que surgiu da cisão de 1914, viria a dizer dele: foi um idealista, morreu na miséria. 

Alguns dias depois, recebem a informação de que a associação está salva. Um grupo numeroso de sócios tinha controlado a situação, elegera novos corpos gerentes, compostos por homens honestos e dedicados à causa, e já tinham metido os gatunos em tribunal.

Mas não foi só esta, a noticia boa que veio de Porto. Algum tempo depois, a nova direcção comunicava que tinham conseguido que no Grande Café e Restaurante Internacional, os patrões deixassem de exigir parte das gorjetas, que no caso, eram ´$400 réis por empregado.

De Paris, chegou também a notícia de que perante um movimento de protesto em curso por toda a França,” a câmara sindical dos patrões” decidira suprimir a «espórtula» que era exigida aos empregados de mesa dos cafés e restaurantes da Cidade Luz.

Em Londres, uma greve em 70 hotéis, terminou com a vitória em 68, que cederam ás reivindicações: o reconhecimento da associação de classe; o descanso semanal; salário mínimo de uma libra por semana para os Ajudantes de Mesa; abolição da caixa de propinas e distribuição equitativa das mesmas; fim do pagamento dos materiais partidos e admissão de pessoal, apenas através da associação, de entre os seus associados. Uma grande vitória da classe, em Inglaterra.

Na América, Nova Iorque, a classe conseguira por meio de uma greve geral dura e prolongada, em que chegou a haver destruição de estabelecimentos pelos piquetes de greve, obter o dia normal de 9 horas de trabalho.

Alguma Luz ao fundo do túnel começava a surgir para dois dos problemas mais prementes que se punham à classe. A redução do horário, e deixarem de pagar para trabalhar.

Esta período de (1907-1913) que classificamos de período da fundação do sindicato, salvaguardadas as questões de escala e de contexto histórico, contem em si todos os ingredientes que constituem as grandezas e misérias do movimento sindical português até aos dias de hoje.

 

O CONGRESSO DE TOMAR – A GUERRA – O REFORMISMO NO SINDICATO (1914 – 1921)

O Congresso Nacional Operário, depois de grande controvérsia sobre a data da sua realização, com os activistas afectos ao Partido Socialista a quererem fazê-lo quanto antes, e os anarquistas e os sindicalistas revolucionários a quererem adiá-lo até que ao camaradas presos no Forte da Graça em Elvas fossem libertados para que pudessem participar, veio a ser convocado definitivamente para 14, 15, 16 e 17 de Março de 1914, em Tomar.

A queda do Governo de Afonso Costa e a sua substituição por um Governo Chefiado por Bernardino Machado, que mandou libertar os presos por razões sociais logo que tomou posse, permitiu que anarquistas e revolucionários estivessem em peso no congresso, evitando assim a tentativa de golpe dos socialistas.                                                                                         

Os trabalhos começaram com viva controvérsia entre reformistas e revolucionários, logo na sessão de abertura, em torno da mesma questão que motivara a cisão de 1909. A presença de delegados não assalariados e não sindicalizados, quase todos membros do Partido Socialista, credenciados por algumas associações de classe, entre as quais a dos hotéis, Cafés e Restaurantes de Lisboa, que credenciou Martins Santareno,[20] dirigente do Partido Socialista. Estes, pretendiam participar de pleno direito, os sindicalistas revolucionários defendiam que apenas podiam participar no congresso trabalhadores assalariados e sindicalizados.

Esta contenda colocou movimento sindical novamente à beira da cisão, mas a unidade foi salva por uma proposta da Comissão Revisora de Mandatos, cujo relator foi Alexandre Vieira.

A proposta, que foi aprovada por maioria, propunha que desta vez os delegados em causa pudessem participar, mas estabelecia o princípio de que em futuros congressos os sindicatos só se poderiam fazer representar por indivíduos assalariados e sindicalizados.

A partir daqui, os trabalhos decorreram com normalidade, tendo o congresso de Tomar ficado para a história como um dos principais marcos do sindicalismo português. Embora os sindicalistas da época tenham concluído que as condições ainda não estavam maduras para a constituição de uma confederação de sindicatos, a verdade é que neste congresso foram aprovados pela primeira vez os estatutos de uma central sindical, com uma secção a Norte com sede no Porto e outra a Sul, com sede em Lisboa. Foram eleitos um Conselho Geral e um Secretário-geral, Joaquim Perfeito de Carvalho, e aprovada uma orientação geral, na base dos estatutos e das diversas resoluções aprovadas.

De Tomar, votada por unanimidade pelos 150 delegados em representação de 280 associações e 90 mil associados[21] saiu uma verdadeira central sindical, a UON – União Operária Nacional, que em 1919 se transformaria na CGT – Confederação Geral do Trabalho, que hoje perdura, na CGTP – Intersindical Nacional.

 Foi também neste congresso que se estabeleceu o princípio, ainda hoje em vigor no sindicalismo consubstanciado na CGTP-IN, de que dirigentes sindicais que viessem a ser investidos em cargos políticos da confiança do Governo, deixariam de fazer parte da direcção da central.

Os sindicalistas revolucionários venceram em toda a linha. Viram aprovadas no essencial, as suas teses, ao mesmo tempo que preservaram a unidade, numa direcção que constituída por socialistas e sindicalistas, acaba por ser hegemonizada pelos revolucionários, graças à maior qualidade e capacidade dos seus militantes.

A fome chegou antes de ida dos militares portugueses para França. No mês em que deflagrou a I Guerra Mundial, Agosto de 1914, o Governo revelou que só havia trigo até Maio de 1915. Em Dezembro era proibida a venda de trigo a particulares, a não ser que fosse para sementeira.

Em 6 de Março de 1915, o pão aumentou de 4,5 para 10 centavos o quilo, o que provocou assaltos da população às padarias.

No dia 14 de Março de 1915, Domingo, a UON faz comícios em Lisboa e Almada contra o açambarcamento de trigo. Em 21 de Outubro são assaltados armazéns alimentares em Cacilhas. Mais de duas mil pessoas resolveram abastecer-se sem pagar. Na região do Douro, os comboios que transportam batata e castanha, são assaltados. A repressão a estas acções de desespero provocadas pela fome foi feita à bala, tendo daí resultado mortos e feridos.

A 30 do Janeiro, são assaltadas mercearias em Lisboa e rebentam bombas em vários locais da cidade. A agitação, provocada pela situação desesperada das populações, estende-se a várias terras da Província. Em muitos casos, com o apoio dos administradores dos concelhos que encabeçavam as manifestações. Em vários sítios, os populares procederam à distribuição dos géneros açambarcados encontrados.

Eram movimentos espontâneos que escapavam à direcção da UON. Mesmo assim, em seguida a tais acontecimentos, a policia assaltou a sua sede, à data na Rua da Barroca, 59 -2º e vários outros sindicatos foram também encerrados.

Mas o movimento sindical tinha saído reforçado do congresso de Tomar e sem se deixar intimidar continuou a conduzir a luta por melhores salários, contra o desemprego e pela paz.

No final de 1916, numa reunião de sindicatos realizada em Lisboa, foi deliberado fazer-se uma Conferência, com o objectivo de reforçar a organização sindical, discutir a carestia de vida e a posição do movimento operário perante as condições da paz.

 

 

[20] A Defesa, nº 72, de 5 de Abril de 1914, fls. 1.

 

[21] Idem

 

 

 SABER FALAR COM OS PATRÕES, MUDANÇA DE ORIENTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

Os desentendimentos entre sindicalistas e anarquistas e a expulsão de alguns deles da Associação alteraram a relação de forças no seu núcleo dirigente. Contra a corrente do que se passa no resto do movimento sindical, o reformismo passou a ser dominante, na hotelaria.

No congresso de Tomar, ao contrário do que se passou em 1909 e1911, o sindicato de hotelaria, representado por Martins Santareno, dirigente do Partido Socialista, que não pertencia à classe, alinhou com os reformistas.

Adelino Augusto Feiteira, o novo Presidente, Chefe de Mesa prestigiado, muito senhor do seu nariz, bem acolitado por alguns intelectuais amigos, tinha opiniões claras sobre os homens que até agora tinham dirigido os destinos da classe. Fizeram um bom trabalho de agitação, mas eram um bocado meio loucos, dizia. Estavam ultrapassados. A forma violenta como falam e agem tem gerado ódios e incompreensões. Feiteira não tinha dúvidas. Para ele, não era viável a maneira como têm vindo a caminhar. Como se têm feito e apresentado as reivindicações. Era preciso estabelecer uma nova linha de conduta, e seguir uma nova orientação. Modernizar e dar nova imagem à Associação. Saber falar com os patrões e com o Governo. Com o devido respeito, sem humilhações e represálias de parte a parte. Porque, se não se tiver critérios e sensatez na forma de tratar cada problema, continua-se em litígio, indefinidamente.

Foi com base neste pensamento que a nova Comissão Executiva começou a elaborar um ‘grande plano de trabalhos’.

No mesmo número do jornal em que são divulgadas as conclusões do Congresso de Tomar, os novos dirigentes dão a conhecer as linhas gerais da nova orientação, em artigo assinado por Zé Cartaxo[22]:

- Que a Associação de classe seja como que uma garantia para os patrões e para o publico, da competência moral e profissional dos empregados;

- O reconhecimento mutuo das associações patronais e dos trabalhadores;

- A Criação duma agencia de colocações;

- A Criação de um cartão de identidade;

- Exclusivo de emprego para o pessoal identificado pela Associação.

Conseguindo estes objectivos, em negociações a entabular entre patrões e empregados, mediadas pela Propaganda Portugal[23], que solicitaremos, estamos convencidos que se inaugurará uma nova fase na indústria em que trabalhamos, com grandes vantagens para todos.

Não se trata de menosprezar o trabalho das direcções anteriores, nem de fazer oposição aos dedicados companheiros que até agora têm orientado a Associação, mas tão-somente assentar num plano que harmonize ideias e interesses.

E, do mesmo modo que associações com orientações diferentes se uniram no Congresso de Tomar, também nós procuremos fazer o mesmo em proveito da classe a que pertencemos e defendemos, com o leal concurso de todos.

A primeira grande mudança introduzida na Associação foi a saída da sede sindical colectiva e a ida para a Travessa dos Inglesinhos, no Bairro Alto.

Mudança que na opinião do novo Presidente, não tinha sido conseguida pela direcção transacta, não por falta de meios, mas pelo muito trabalho e o muito tempo e dinheiro que gastavam na fiscalização para cumprimento do descanso semanal. Só do mês anterior à tomada de posse tinham deixado 110 processos para enviar para tribunal.

Feiteira, afirmava perante os colegas: – Felizmente que isto vai mudar. A nova politica de diálogo já trouxe à sede da Associação uma delegação de seis patrões, incluindo o Presidente da respectiva associação patronal, que se comprometeram a cumprir o descanso semanal se não déssemos seguimento aos processos de queixa.

A nova sede é uma casa moderna, onde foram feitas obras de adaptação apropriadas à função. Possui uma luxuosa sala de sessões, que pode ser transformada em teatro visto possuir um esplêndido palco, onde pode ser representada qualquer. Tem gabinetes para as direcções, salas de reunião e de leitura, onde também se pensa fundar uma biblioteca. Está já montado o telefona nº 884, para servir o associados; uma Agencia de Colocações; a Tuna, e um grupo musical; aulas de francês, estando também previsto o ensino do inglês.

O projecto de cartão de identidade para ajudar a controlar o emprego está também  em andamento.

O acordo de gestão comum da sede com a associação mutualista dos cozinheiros e a cooperativa dos criados, expresso em regulamento, com um órgão autónomo constituído por elementos de cada uma das associações, é considerado um modelo a seguir pelo movimento operário. 

Foi estabelecido um plano de conferências de carácter educativo, para cuja concretização já estava garantida a participação de escritores, professores, jornalistas e advogados. A primeira teve a participação do Dr. João de Deus Ramos[24], que tratou o tema, ‘A Instrução’.

Na sua lição, muito concorrida, o professor e deputado socialista, disse que a proliferação de estrangeiros a trabalhar na indústria hoteleira se devia à inexistência de formação profissional em Portugal. E fez questão de elogiar a Associação por ter assumido o objectivo de suprir essa lacuna.

 O novo Presidente da Associação, Adelino Feiteira, julgava ter um trunfo importante para apresentar à Assembleia-geral que se realizou em Março de 1915. A comissão chefiada por si, que foi à Associação Patronal pedir auxilio para custear os cursos de línguas, saiu de lá eufórica com os resultados.

Em tom de vitória, Feiteira informou a Assembleia que os patrões lhes tinham prometido ajuda financeira. E, concluiu embevecido, que tinham sido recebidos de forma muito simpática e dialogante pelos dirigentes patronais, em torno de uma mesa e cadeiras sumptuosas – até lhes tinham oferecido bolos e um cálice de Vinho do Porto-.

Dera-se sem dúvida uma grande viragem na vida e na orientação da Associação, que por isso mesmo, não deixou de desencadear forte oposição interna.

Os sindicalistas revolucionários e os anarquistas, organizados, contra-atacaram.

Queriam saber se a direcção também tinha tratado com os patrões as formas de cumprimento da lei do descanso semanal e de acabar com o roubo das gratificações. Queriam saber porque razão é que a Associação ainda não se filiara na UON, e porque não tinha contribuído como as outras classes para o orçamento do 1º de Maio. Queriam saber porque é que se tinham esquecido de nomear os representantes dos trabalhadores nos tribunais Avindores e para a Bolsa de Trabalho de Lisboa.

Surpreendido pelo grau de organização da oposição, o Presidente da Comissão Executiva tenta apaziguar os ânimos. Declara que já tinham enviado um mês de quotização para a UON, mas que quanto à filiação, seria uma questão a pensar. Para o 1º de Maio, propõe a circulação de uma folha para recolha de fundos pela Assembleia. Quanto à falta de nomeação dos representantes justifica a omissão com os muitos afazeres.

Relativamente ás questões do descanso semanal e da paga do trabalho, considera extemporâneo estar agora a colocá-las ao patronato. Acha melhor esperar algum tempo até eles cumprirem a promessa de financiamento dos cursos de formação realizados na associação. Depois da satisfação deste, faremos outros pedidos, conclui.

José de Almeida Duarte, um dos fundadores, dirigente educado, sereno e rigoroso, mais experiente nestas refregas, acudiu em ajuda ao camarada de Direcção. Queria apresentar à Assembleia, o documento que consideravam mais importante para a classe, aprovado no Congresso de Tomar: o projecto de regulamentação do jogo, elaborado por Carlos Rates[25] e com cuja fundamentação e objectivos estavam de acordo e pretendiam defender junto do Governo.

Como disse Rates no congresso – prosseguiu Almeida Duarte – apesar da proibição, joga-se desenfreadamente em Portugal. Logo, é melhor legalizar e regulamentar o jogo. A legalização dará trabalho aos operários da construção civil e do mobiliário, e na hotelaria, ocupará muitos braços inactivos. Para isso era preciso garantir as condições expressas no projecto de regulamento:

a) Que as construções de edifícios, parques, etc. sejam executadas por operários portugueses; b) Que, pelo menos, três quartas partes do pessoal hoteleiro, seja português; c) Que as receitas provenientes do jogo sejam aplicadas; metade à instrução primária e profissional, por intervenção dos municípios; outra metade ás reformas sociais do operariado.[26]

Quanto à Bolsa de Trabalho, mercado destinado à oferta e procura de emprego, onde patrões e empregados estão em relação uns com os outros, Almeida Duarte é de opinião que se deve valorizar a que está em curso de instalação na sede da Associação, exclusivamente dedicada aos sócios, com prejuízo da Bolsa de Lisboa.

Para os Revolucionários, as intervenções dos membros dos corpos gerentes não só não convenceram, como foram a prova real das críticas que lhes faziam. E voltaram à carga.

Sob a nova direcção, a Associação estava a desviar-se dos fins principais para que fora criada. A dar prioridade à realização de festas e a iludir-se com a ingénua possibilidade de se substituir ao patronato e ao Estado na educação e formação profissional. A fechar-se em reuniões de gabinete, em diálogos sem fim, numa politica de não querer hostilizar os proprietários, para que estes acabem por melhorar as condições de trabalho por via do convencimento e da razão.

A oposição acusa ainda a direcção de não compreender que o pretendido relacionamento ‘amigável com os patrões, só para que a classe esteja bem vista por eles, os coloca sem liberdade de acção para agir contra qualquer atropelo, sob a chantagem de retirarem a sua ‘confiança e acabarem com as boas relações.

Manuel Rodrigues Correia é frontal. Acusa Feiteira de ser uma marioneta nas mão dos intelectuais das dúzias que começaram a frequentar a Associação depois das expulsões, sem se saber bem de onde vinham e ao que vinham.

Ao certo só se sabe que pretendem transformar Lisboa num novo Monte Carlo; que, enquanto pagamos aos patrões para trabalhar, fundam uma Agencia de Colocações na sede da Associação, e fazem disso um negócio vexatório que devia era ser proibido.

A Direcção reformadora acabou por cair em assembleia-geral, não resistindo à contestação. Mas a Direcção que a substituiu durou pouco mais de seis meses. O seu Presidente, Manuel Rodrigues Correia, demitiu-se por razões familiares e as eleições seguintes proporcionaram o regresso em força de Adelino Feiteira e da sua corrente sindical, que puderam dizer: – afinal os revolucionários foram-se embora sem fazer nada.

Neste segundo mandato, mercê de uma melhor composição dos corpos gerentes, em que o activo Quintela Maia, sócio dos primeiros tempos, assumiu papel de relevo ao lado de Feiteira e José de Almeida Duarte, a Direcção reformista da Associação passou a dar mais atenção à acção reivindicativa e aos atropelos do patronato, embora sem alterar a sua linha ideológica.

Em 28 e 29 de Abril de 1917, realiza-se em Lisboa, na Sociedade de Geografia, sob a presidência do Ministro do Fomento, Dr. Magalhães Lima, o primeiro Congresso Hoteleiro, organizado pelo Conselho Nacional de Turismo.

Neste congresso é discutida a regulamentação o jogo; são propostas a criação de uma federação do turismo; uma escola de formação profissional; a repressão à mendicidade nas zonas turísticas; o uso de trajes característicos de cada região e do nome bem visível na lapela, pelos empregados dos hotéis.

A direcção da Associação lamenta não ter sido convidada, já que os trabalhadores têm uma palavra a dizer no desenvolvimento do turismo, e deviam ter o direito de estar ao lado das várias entidades presentes no congresso.

Não podendo participar de viva voz, a Associação enviou ao congresso uma petição em que dá algumas informações, expõe os seus pontos de vista e solicita que sejam tomados em consideração. Informa que teve a funcionar durante alguns meses aulas de línguas, que só não tiveram êxito, porque os que as frequentavam não eram dispensados para o efeito pelas empresas, havendo muitas que nem queriam que os seus empregados fossem filiados na Associação.

 Má compreensão esta, afirmam. Porque se um empregado educado pugna mais conscientemente para que sejam respeitados os seus direitos, também cumprirá melhor os seus deveres profissionais para com a casa onde trabalha.

O congresso – continua a sua petição – também não pode deixar de ter em conta as condições de trabalho: os dormitórios dos empregados são uma vergonha, resumindo-se em muitos casos a um simples colchão estendido em sítios viciados, onde o próprio ar é irrespirável. O descanso semanal continua a não ser cumprido, havendo muitos moços de cozinha e copa que passam meses sem por o pé na rua. Os criados de mesa continuam a ter de dar aos patrões parte das gratificações que recebem dos clientes.

Posto isto, dizemos com toda a lealdade, que enquanto a classe patronal se não convencer que não deve impedir os empregados de se associarem e não cumprir as leis da Republica, os congressos não servirão de nada.

Esperando que saibam tirar as devidas ilações, agradecem antecipadamente, etc., etc., terminam.

 

[22] Pseudónimo com que escreve em A Defesa, Martins Santareno, membro do Partido Socialista e dirigente do Centro Antero de Quental.

[23] Instituição oficial de promoção do turismo.

[24] Pedagogo, fundador dos Jardins Escola João de Deus, filho de João de Deus, autor da Cartilha Maternal.

[25] Carlos Rates foi um dos mais destacados sindicalistas entre 1910 e 1925 e foi um dos fundadores Partido Comunista em 1921. Mais tarde passou-se para o fascismo e veio a trabalhar num dos seus órgãos oficiosos, O Diário da Manhã.

[26] A Defesa, Nº 74,de 15 de Maio de 1914 p.1

 

GUERRA À GUERRA, O AGRAVAMENTO DA CARESTIA DE VIDA

A maioria dos políticos republicanos, com Afonso Costa à cabeça, defendia a entrada de Portugal na guerra contra a Alemanha, ao lado da Inglaterra e da França, entre outras razões, a pretexto de que se não o fizessem, terminada a guerra, as colónias portuguesas seriam moeda de troca nas negociações entre os belígerantes, em eventuais negociações de paz.

Claro que o Povo não estava interessado numa guerra que lhe iria matar os filhos e trazer a fome. Mas isso não impediu a formação do Governo da «União Sagrada» constituído pelas principais forças politicas, chefiado por Afonso Costa, com o fim de levar Portugal entrar na guerra. O que veio a acontecer com efeitos desastrosos no plano militar e no plano social.

Um ataque alemão ao sector português, no rio La Lys, em França, dizimaria em algumas horas 7425 soldados. O historiador Jaime Cortesão viria a equiparar a participação de Portugal na I Grande Guerra à aventura de D. Sebastião, em Alcácer Kibir, no Norte de África, em Marrocos.

O embarque de soldados portugueses para a guerra em França começou em Janeiro de 1917, à média de 4 mil por mês.

 As correntes de classe do sindicalismo mundial, há muito que tinham assumido a Paz como um dos objectivos centrais da sua luta. Guerra à Guerra, não era uma palavra de ordem exclusiva de Lenine, na Rússia Czarista. Era-o também de grande parte do sindicalismo mundial.

Foi obedecendo a esta premissa que na Associação de Classe da hotelaria se tomaram as primeiras posições sobre a conflagração. Para os sindicalistas, a guerra, tendo muitos fautores, é, em resumo, um grande conflito da questão social. Por de traz de todas as razões estão os interesses dos capitalistas.

«O actual conflito não foi motivado pela ambição austríaca, nem pela cobiça inglesa, nem pela loucura alemã, nem pela precipitação russa, isoladamente, porque teve causa simultaneamente em todos esses factos e em muitos outros. No fundo, a guerra foi determinada, inevitabilizada pelo capitalismo e pelo Estado.»[27]

Na Associação, alinhava-se pela visão de Perfeito de Carvalho, primeiro Secretário-geral da UON, agora na Ilha da Madeira, onde desenvolve uma intensa batalha contra a guerra, no semanário Trabalho e União, que dirige até Março de 1916.

Só houve unanimidade entre a classe, na controvérsia sobre a guerra, nos primeiros tempos. Do Porto veio um artigo solicitando a publicação em A Defesa, a defender a participação de Portugal na Guerra. Em Lisboa, embora a maioria fosse contra, apareceram também alguns guerristas na classe.

Entre os activistas sindicais, instalou-se a confusão total. O congresso de Tomar tinha tomado posição contra a guerra. Os seus princípios impunham-lhes a luta pela paz. O operariado, a juventude, as mães e o povo em geral, não queriam a guerra.

Mesmo assim, a divisão instalou-se entre guerristas e anti-guerristas e atravessou todas as correntes ideológicas. Os socialistas foram aturdidos pela posição da II internacional, ao colocar-se em defesa das burguesias nacionais e contra a palavra de ordem internacionalista, «guerra à guerra». Entre os anarquistas, que de inicio supunham que a guerra traria a revolução social, foi o drama completo quando foram conhecidas as posições de dois dos seus mais reputados mentores ideológicos, a nível internacional. O russo Kropotkine, a defender a intervenção contra a Alemanha, a fim de se derrotar o militarismo alemão e o imperialismo prussiano para salvar a civilização europeia. Do lado contrário, o italiano Malatesta, a assumir uma posição anti-belicista, afirmando que nenhum dos beligerantes tinha o direito de se proclamar defensor da civilização.

Os sindicalistas revolucionários não escaparam à divisão. Alguns destacados activistas desta tendência, Carlos Rates, Manuel Ribeiro e outros[28], vieram a público manifestar-se pela intervenção de Portugal na guerra.

 Para obviar a confrontos maiores, na hotelaria, decidiu-se que apenas se publicariam no jornal da Associação, artigos que defendessem a necessidade de acabar com todas as guerras.

A entrada de Portugal no conflito trouxe a mobilização de associados e activistas, agravou ainda mais a carestia de vida, e enlutou as famílias. Começa a falar-se que as mulheres iriam substituir os homens nos vários misteres. Diz-se que os hotéis vão servir para albergar feridos de guerra, que naturalmente não poderão dar gratificações, vindo por isso, se tal acontecer, a acrescentar à inflação a redução efectiva da remuneração pecuniária dos trabalhadores de hotelaria.

O problema da escassez e da falta de qualidade do pão, que já se arrastava de antes da guerra, agrava-se brutalmente. Os preços dos bens essenciais duplicam rapidamente e são objecto de açambarcamento por parte dos especuladores.

O preço da chávena do café aumentou dez réis, o que vem prejudicar as gratificações dos clientes, que já tinham diminuído muito devido à baixa do poder de compra. Os ordenados continuam a ser os mesmos.

Em Novembro de 1916, a Associação dos Manipuladores de Pão pede à Associação para se pronunciar sobre a questão do pão, convocando-se para o efeito uma Reunião Magna, que se realiza em 20 de Novembro de 1916. Na sala encontra-se um cívico, em representação da autoridade, para não deixar dizer coisas que não pudessem ser ouvidas. O Governo da União Sagrada tinha imposto a censura. Mas não se saiu fora dos rails, e como se tratou apenas das questões da vida, como boa gente amante da Paz, que só faz guerra aos desalmados dos patrões que continuam a ficar com as gratificações, tudo se fez sem necessidade de intervenção da autoridade.

A sala estava apinhada quando se procedeu à discussão e votação das duas moções: Uma, que expressa apoio ao governo para que cumpra o decreto que estabelece dois tipos de pão, propondo ainda uma terceira qualidade, mais barata. E outra, a apoiar a proposta da Associação dos Manipuladores, de um só tipo de pão, e um único preço, que não vá alem dos 12 centavos o quilo, assinada pelo sócio nº 1 da Associação, Manuel Rodrigues Correia, e aprovada por grande maioria.

Numa posição final, a assembleia exige o combate ao açambarcamento por parte do Governo. Propõe que as câmaras municipais adquiram géneros de consumo essenciais e os coloquem no mercado, para através da concorrência, obrigarem os açambarcadores a vender os artigos que ocultam. Terminam afirmando que se o Governo se deixasse de ‘tabelas’ e criasse medidas de auxílio ás cooperativas, estas, por si só, manteriam na ordem os açambarcadores e acabavam com a ladroeira.

O decreto de economia da luz, de 30 de Dezembro de 1916, vem agravar abruptamente a situação da classe. Esta lei, determinou que os cafés, restaurantes e casas similares, sejam encerradas ás 23 horas. Ora, é depois desta hora que as casas fazem o maior volume de negócio. Sabendo-se que a remuneração dos criados de mesa é constituída pelas gorjetas dos clientes, é bom de ver quais as consequências deste encerramento prematuro.

Nos primeiros meses de 1917, as associações de classe de Lisboa, Porto e Braga, desmultiplicam-se em diligências e petições, a solicitar a suspensão da aplicação do decreto da luz à hotelaria. As dificuldades foram maiores, devido ao facto de os patrões terem ficado passivos, neste caso, cumprindo imediatamente a lei, ao mesmo tempo que despediam trabalhadores, sob o pretexto de precisarem de menos pessoal para um período mais curto de abertura.

O mesmo já não acontecia com o cumprimento da lei do descanso semanal, que continuavam a violar impunemente. Dos 114 autos de infracção enviados a tribunal pela associação de Lisboa, em Março, apenas foram julgados os proprietários que não tinham padrinhos nos círculos do poder.

As associações de hotelaria sedeadas na Travessa dos Inglezinhos, a que se juntaram os corretores, em reunião conjunta, decidem convocar uma reunião Magna de protesto contra a carestia de vida. Era preciso tomar medidas e juntarem-se à luta geral promovida pela central sindical. Fazer como as outras classes. Lutar. Isto já lá não ia com petições concluíram. O preço do feijão, que era a 16 centavos em Dezembro de 1917, estava a 25 centavos em Abril de 1918. O mesmo se passava com o açúcar, o arroz e outros bens essenciais. Três quartos das despesas das famílias operárias são feias na compra de bens alimentares.

Neste ano de fome, guerra e peste, não se comemora o aniversário do 5 de Novembro, pela primeira vez na história da Associação.

A culminar os protestos contra a carestia de vida, a UON lança-se na organização de uma greve geral, a realizar a partir de 18 de Novembro de 1918.

A adesão à greve geral é boa por parte dos agrícolas do Alentejo e do operariado do Algarve, onde em Portimão foram mortos dois marítimos, pela tropa.

No Vale de Santiago, as populações rurais chegaram a pretender expropriar e dividir as terras[29]

O Sidonismo, que chegou a captar a simpatia de parte do operariado, elevava-se agora ao melhor estilo de Afonso Costa, incluindo a acusação aos sindicalistas de estarem mancomunados, desta vez, simultaneamente com os monárquicos e com os democráticos.

Após a sua morte, os partidários de Sidónio passam a ser mais papistas que o Papa e aumentam a perseguição aos sindicalistas. Nos dias que medeiam entre o assassinato e os funerais, os sidonistas obrigam vários sindicatos, sob a ameaça de assalto, a porem as respectivas bandeiras a meia haste, e impõem o uso de gravata e braçadeiras pretas à população. Braçadeiras e gravatas expressamente feitas para o efeito nos estabelecimentos do Estado, nomeadamente no Depósito Central de Fardamentos.[30] 

Durante o Sidonismo, os monárquicos tinham levantado a cabeça e reorganizaram-se, chegando a criar juntas militares com o intuito de restaurar a Monarquia. Aproveitando o vazio de poder provocado pela morte de Sidónio, Paiva Couceiro, erigido herói militar devido ás campanhas em África, auto-promoveu-se a Regente, e a 19 de Janeiro de 1919, no Porto, declarou restabelecido o regime monárquico dando azo à fugaz Monarquia do Norte.

Em Lisboa, uma imponente multidão em que predomina o operariado, incluindo muitas mulheres, desce a Avenida da Liberdade em direcção ao Terreiro do Paço, onde faz saber a Tamagnini Barbosa, então Chefe do Governo, que estão dispostos a bater-se pela República[31]

Horas depois, a 24 de Janeiro, a Junta Militar do Sul, em Lisboa, também quis proclamar a Monarquia e concentrou as tropas em Monsanto. Mas, o Povo de Lisboa, juntamente com a parcela dos militares fiéis ao regime republicano, com grande participação do operariado e activistas sindicais, armados, escalam Monsanto e escorraçam os monárquicos, defendendo a Republica.

A breve trecho o poder político voltava às mãos dos homens da República.

 O movimento sindical não saiu enfraquecido do confronto. Pelo contrário, emergiu como principal força que se opusera à ditadura, prestigiado no seio dos trabalhadores e na sociedade, o que lhe permitiu intensificar a luta contra a carestia de vida e pela redução do horário de trabalho.

 Após lutas laborais memoráveis e um Primeiro de Maio grandioso em 1919, o Governo manda publicar, no dia 7 de Maio, o decreto 5 516, tornando obrigatória a jornada de trabalho de 8 horas diárias e 48 semanais, para o comércio e a indústria.

Só que, face à reacção patronal, que sob o comando de Alfredo da Silva, da CUF, se recusava a cumprir a lei, o ministro atemorizou-se e apressou-se a recuar.

O camarada Augusto, como também era conhecido o socialista Augusto Dias da Silva que então ocupava a pasta de Ministro do Trabalho,  fez um despacho que remetia para o acordo entre patrões e trabalhadores a regulamentação das oito horas de trabalho, e enviou-o por circular ás associações de classe.

 Em vez da paz social e da negociação pretendidas foi a guerra que o ministro desencadeou.

A luta pela aplicação das oito horas soma-se à que vem sendo desenvolvida contra a inflação galopante, através da exigência de aumentos salariais, e as greves sucedem-se em todas as profissões e actividades.

Por isso, o Governo, rapidamente esquecido do contributo que o operariado dera mais uma vez para salvar o Regime Republicano, lança-se de novo na repressão. Em Olhão, numa greve de marítimos, a GNR faz mortos e feridos[32].

Em Lisboa regressam as prisões em massa. A sede da UON é encerrada devido a uma greve de solidariedade para com centenas de trabalhadores da CUF, que Alfredo da Silva havia despedido, acusando-os de sabotagem por estarem em greve.

200 Operários, incluindo a redacção, administração e tipógrafos do jornal da confederação sindical, A Batalha, são presos. O que determinou outro movimento de solidariedade, que envolveu a greve geral nos gráficos, e levou a que os jornais diários burgueses também não saíssem.

Na CP, durante uma greve em que ocorreram actos de sabotagem de material ferroviário e nas linhas, o Governo de Sá Cardoso inaugura um dos episódios mais sinistros da época. À frente cada locomotiva, conduzida por alguns fura greves que conseguia recrutar, mandava atrelar um Jota, descoberto, enchendo-o de grevistas, que assim, quando o comboio descarrilava ou ia pelos ares, independentemente da sua responsabilidade em tais actos, e fosse quem fossem os seus autores, seriam os primeiros a sofrer as consequências. Este processo que viria a ser repetido noutras ocasiões, ficou conhecido pelo processo do Vagão Fantasma.[33]

 No dia 13 de Setembro de 1919, inicia-se em Coimbra o II Congresso da UON, que se extingue e cria a CGT – Confederação Geral do Trabalho, que nos anos seguintes adquire grande protagonismo. Chegou a ter mais de 100 mil sócios nos sindicatos nela filiados[34].

O ano de 1919 foi um ano extraordinário de acontecimentos, lutas, organização e de êxitos na história do movimento operário português. A derrota da reacção monárquica, as oito horas diárias na lei geral, A Batalha e a CGT, são frutos deste ano excepcional.

Os Cafés de Lisboa eram autênticos centros de agitação politica. Mais do que nas sedes dos partidos, é ali que se fazem as grandes discussões politicas. No Alvarez, na Rua Primeiro de Dezembro, reúnem os comunistas do recém-constituído PCP. Os restos do Sidonismo, no Chave de Ouro. Os Democratas e a sua tropa de choque, a Formiga Branca, na Brasileira do Rossio. Os Monárquicos, no Martinho. A Esquerda Democrática, no Itália, e os Anarquistas, no Café Colonial.[35]

 

 

 

[27]Joaquim Perfeito de Carvalho, citado por Francisco Canais Rocha in Guerristas e antiguerristas «A Guerra vista por um sindicalista», Centro de História da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1986 p. 136

 

[28] Gonçalves, Bento, Os Comunistas – Palavras Necessárias – Porto, A Opinião, Porto, Maio de 1976 p. 74

 

[29] Sousa, Manuel Joaquim de, Op. Cit. Porto, Afrontamento, Dezembro de 1976 p. 110

 

[30] Vieira, Alexandre Op. Ct. 128

 

[31] Idem, 129

 

[32] Sousa, Manuel Joaquim de, Op. CIt. p. 111

 

[33] Idem, Op. Cit. 111-112

 

[34] Bento Gonçalves, O PCP e o VII Congresso da Internacional Comunista, Lisboa, Editorial Avante, Novembro de 1985 p. 18

 

[35]Carvalho, David de  – Os Sindicatos e a Republica Burguesa (1910 – 1926) Lisboa, Seara Nova, Março de 1977.

 

 

EXCLUÍDOS DO HORÁRIO DE TRABALHO, O FIM DA PAGA PELO TRABALHO

Desde a fundação que na Associação se tinha a ideia clara de que o instrumento principal da exploração capitalista era a duração da jornada de trabalho. Logo no 1º de Maio de 1909, reclamaram as oito horas diárias, 48 semanais, um dia de descanso e um salário mínimo que garanta a subsistência do trabalhador e da sua família.

Mas, apesar dos exemplos internacionais e até nacionais, como na Carris, onde já se tinha reduzido o horário para este limite ou próximo dele, não tinham grandes ilusões. Nos hotéis cafés e restaurantes havia ainda um longo caminho a percorrer. Nem os dirigentes nem os trabalhadores acreditavam na possibilidade da redução diária de sete a dez horas, quando o dia de descanso semanal, que significava também uma redução grande do tempo de trabalho, não estava adquirido.

Por isso, quando é posto à discussão o projecto de lei em 1911, a única preocupação da Associação foi o descanso semanal. O mesmo já não aconteceu com a lei de Janeiro de 1915, que fixa em 10 horas diárias e 60 semanais o trabalho na indústria. Nesta ocasião, a Associação foi ao parlamento entregar uma petição a exigir a aplicação da lei na hotelaria. Mas esta reivindicação não foi isenta de controvérsia interna. Os empregados de mesa temiam que uma tão drástica redução do horário de trabalho viesse reduzir o montante das gratificações, que continuavam a constituir a sua única remuneração pecuniária.

 Em Lisboa, os que defenderam que a futura lei não se devia aplicar ao pessoal das mesas, não tiveram força suficiente para fazer passar esta posição contraditória, na Assembleia-geral. No Porto aconteceu o contrário. A Assembleia-geral da Associação desta cidade aprovou um parecer em que propõe um horário de 10 horas diárias para o pessoal de cozinha e balcão e que os empregados de mesa não fiquem incluídos na lei.

A lei acaba por abranger apenas os estabelecimentos industriais, mas estas hesitações e contradições da classe enfraqueciam a capacidade reivindicativa relativamente ao horário e viriam a ter um preço histórico muito amargo.

Nos regulamentos de horas que de seguida vão sendo aprovados nas câmaras municipais para os estabelecimentos comerciais, com subterfúgios diversos, a classe é excluída da regulamentação.

O descalabro acontece em 1919, com a saída do Decreto 5516 de 7 de Maio. Esta lei, que é sem duvida um marco histórico na legislação laboral portuguesa ao estabelecer como horário máximo de trabalho para o comércio e indústria, as 8 horas diárias em 48 semanais, exclui da sua aplicação os trabalhadores de hotelaria.

O projecto inicial excluía os trabalhadores domésticos, os do mar e os rurais da sua aplicação. Tal formulação, não sendo totalmente esclarecedora, permitia uma interpretação favorável à aplicação da lei aos hotéis, cafés e restaurantes, como actividade comercial evidente que eram.

Mas o Governo acaba por ceder aos argumentos e pressões do patronato, que defende que os trabalhadores de hotelaria sempre foram considerados domésticos. Para defenderem a tese, os patrões argumentam com disposições dúbias do código civil, e com o facto de estes trabalhadores, contrariamente aos outros, terem direito a comida cama e roupa lavada, vivendo muitas vezes, em família, com as entidades patronais.

Isto era uma anedota trágica porque estes direitos eram ao mesmo tempo, grilhetas de escravatura, que retinham muitos trabalhadores fechados dentro dos estabelecimentos, sem salário, sem horário, e em muitos casos meses e meses proibidos de saírem à rua.

A verdade é que o ministro do trabalho, convencido, vencido ou vendido, introduziu à última hora um parágrafo único no artigo primeiro da lei, que considera de forma expressa os empregados dos hotéis e restaurantes como domésticos.

Os cozinheiros e o restante pessoal, que no seu trabalho não está  em contacto com os clientes, não recebendo por isso, gratificações, foram os únicos a reagir com a marcação de uma greve a exigir a aplicação da nova lei do horário de trabalho à classe. Greve que foi um fracasso, pois a não participação dos empregados de mesa na luta, e alguns fura-greves, permitiram que a maioria dos estabelecimentos se mantivesse aberta.

 Foi assim que uma situação que decorria dos costumes, passou a ser lei, e que uma lei que para a maioria dos trabalhadores foi um progresso, para a classe foi um retrocesso.

A redução do poder de compra provocada pela guerra afectou toda a gente, incluindo a pequena e média burguesia frequentadora de restaurantes e cafés. Facto que fez diminuir radicalmente o volume das gratificações recebidas pelos criados de mesa.

Os primeiros a entrar na luta devido a esta situação foram os trabalhadores do Café Martinho, que em Outubro de 1916, desencadearam uma greve, a exigir o estabelecimento de salários fixos. A resposta do dono do café, o famoso Alvarez, bem conhecido da classe, voltou a ser violenta. Despediu seis trabalhadores filiados na Associação, substituindo-os por não filiados. Este processo, desencadeou um movimento de protesto que organizou uma acção de boicote ao café, através da ocupação das mesas por um grupo de sócios, sem nada consumir, e uma manifestação a que se juntaram muitos populares, a que o Alvarez respondeu com o encerramento das portas do café quando passavam à sua frente.

Em 20 de Novembro, realiza-se uma reunião magna de solidariedade para com os Trabalhadores do Martinho, onde são aprovados três objectivos de luta: o reconhecimento formal da Associação pelo patronato; o cumprimento integral do descanso semanal e a abolição da paga pelo trabalho (ou do imposto sobre o direito ao trabalho como também chamam à parte das gratificações que continuam a ser obrigados a entregar aos patrões).

O dono da Brazileira, que se envolveu em provas de força várias vezes com a Associação e com os trabalhadores, foi o primeiro a concluir, no princípio de 1917, que o valor das gorjetas que extorquia aos empregados não valia a pena comparado com os custos da conflitualidade gerada, e deixou de o exigir.

Esta cedência levou a Associação a enviar uma circular ao patronato a propor o aumento dos salários e a apontar o exemplo da Brazileira no caso das gratificações.

Apenas receberam as resposta do Café Gelo e da Cervejaria Leão, a informar que já tinham feito aumentos e deixado de cobrar gratificações. Acrescentavam que alem disso tinham concedido o direito a vinho com as refeições, aos seus empregados.

Seguiram-se movimentações no Chave de Ouro e no Café Royal, onde também foi conseguida a abolição da paga.

Em Julho de 1918, o gerente de café, senhor Ribas, foi expulso de sócio da Associação por ter solicitado à polícia a apreensão de um comunicado à classe, de apelo à luta pelo fim do roubo das gorjetas. O bisbórria do Ribas, nem sequer vira que o comunicado até estava visado pela Comissão de Censura.

No princípio de 1920, um criado de mesa ou um porteiro de hotel, ganham 5 escudos, e um soldado da GNR ganha 45.

O crescente aumento do custo de vida torna-se insuportável. Não admira por isso, que os empregados do Hotel Avenida Palace ao receberem, no dia 1 de Junho de 1920, uma conta de 318 escudos, de objectos deteriorados durante o serviço para pagar, relativos ao mês de Maio, se tenham decidido recusar tal pagamento e a abandonar o trabalho como forma de protesto.

O director do Hotel ameaçou-os de encerrar o restaurante e despedi-los, caso não procedessem ao pagamento exigido e não retomassem o trabalho.

Perante a ameaça, os trabalhadores decidiram arrumar a sala, após o que abandonariam o serviço, em greve. Qual não é o seu espanto quando se dirigiram ás portas para sair e as encontraram trancadas por fora, colocando-os na situação de prisioneiros no local de trabalho, ouvindo-se do outro lado o director a vociferar, a apodá-los de ‘bolchevistas.’   

 Algum tempo, depois apareceu a policia que prendeu todo o pessoal, levando-os, primeiro para a Esquadra do Teatro Nacional, e depois para o Governo Civil, onde estiveram enclausurados durante quatro dias, acusados de sabotagem económica e de se recusarem a servir os clientes. Acabaram por ser postos em liberdade, pois o único crime de que poderiam ser acusados, foi o de terem exercido o legitimo direito de greve.

Em Janeiro de 1921, parte do pessoal, incluindo o Maitre de Hotel e o segundo chefe, que tinham sido solidários na luta e substituídos por estrangeiros, foram readmitidos nos seus lugares.

Foi no meio desta agitação, que a Associação, após diligências, desta vez bem sucedidas junto da direcção da organização patronal, enviou, com o acordo desta, um ofício aos cafés e restaurantes para que deixassem de exigir a espórtula.

Numa assembleia, realizada em fins Janeiro de 1921, convocada por um grupo de sócios ao abrigo dos estatutos para discutir a proibição do costume da gratificação, e a sua substituição por uma taxa de serviço sobre a conta, a Direcção da Associação aceitou a proposta apresentada para estudo, ao mesmo tempo que informou, que das grandes casas de Lisboa, apenas o Martinho não quis anuir à nova orientação da associação patronal, e continuava a extorquir parte das gratificações aos seu empregados.

 

UMA ASSOCIAÇÃO DE CLASSE DE MULHERES, O MOVIMENTO CONTRA O LIVRETE

As mulheres não têm qualquer papel activo na vida da Associação entre 1907 e 1920.

Em Lisboa, aparecem algumas referências à igualdade de direitos das mulheres. Em 1911, defende-se que elas também têm direito ao descanso semanal, mas não se chega ao ponto de as admitir como sócias. No jornal, é publicada uma notícia sobre a admissão de mulheres para a cozinha do Rei Eduardo VII de Inglaterra, ao mesmo tempo que se refere a simpatia do seu Chefe, um francês, pelos dotes culinários femininos. Salienta-se o aparecimento do novo elemento nas lutas sociais, e defende-se o sufrágio para as mulheres. Mas estas posições são apenas subscritas por elementos mais avançados.

O ambiente geral não é propício a tais progressismos. Quando em Setembro de 1916, a Associação do Porto protesta contra a abertura de um café servido só por mulheres e apela à classe que a secunde, o apoio que recebe é bem maior do que aquele que é dado à luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres.

É a ideia ‘peregrina’ do Governador Civil de Lisboa para controlar os roubos na cidade, que dá um impulso forte ao aparecimento organizado das mulheres na luta.

O Governador Lelo Portela, aviador condecorado e viajado, partiu da observação do caso de uma ladra que se fez passar por criada, para a ideia de que todas as criadas eram ladras. Logo, a forma de acabar com roubos em Lisboa era controlar apertadamente a movimentação da criadagem.

Foi assim que em Junho de 1921, a classe estava em polvorosa contra o regulamento que o senhor Governador queria impor aos serviçais. Um regulamento igual ao das prostitutas, que já eram obrigadas a matricular-se e a ir à revista de saúde, uma vez por mês, ao Governo Civil.

Acontece que, na opinião do jurista do sindicato, o regulamento se aplica a homens e mulheres, criados e criadas, de casas particulares ou de hotéis e restaurantes.

Para alem da apresentação periódica às autoridades, o regulamento obrigava à posse de um livrete, com o nome, fotografia, a casa onde trabalhavam e outros elementos de identificação, bem como ao pagamento de uma taxa. O regulamento permitia ainda aos patrões o desconto de 50% do salário aos criados que, em determinadas circunstâncias tivessem comida, dormida e roupa lavada.

Apoiado pela União dos Sindicatos Operários de Lisboa – USO – e pela Associação, estava em curso desde o mês de Janeiro um processo de constituição de uma Associação de Classe das Empregadas Domésticas de Hotéis e Casas Particulares. A Comissão Dinamizadora, presidida por Violeta Magalhães, levara até então uma intensa actividade de propaganda. Com reuniões muito participadas e inscrições de sócias na cidade, mas também com grande sucesso em Sintra, Cascais e Estoril.

Em A Batalha de 9 de Julho, a Direcção da Associação das Domésticas aconselha as associadas a irem assistir à conferência de D. Maria Oneill, do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, sob o título «A Prostituição Infantil», a realizar na Associação dos Caixeiros, na Rua António Maria Cardoso, 20 -1º, pelas 21 horas.

Nesse mesmo dia, o Conselho de Delegados da USO tomou conhecimento da constituição da nova associação, cujos estatutos já tinham sido entregues na respectiva repartição. A sua sede seria na Travessa dos Inglezinhos juntamente com a dos camaradas dos hotéis e restaurantes.

As heroínas que tiveram a coragem de aceitar constituir a direcção desta associação de classe de mulheres, são: Violeta Ribeiro de Magalhães, Lídia da Cruz Leão, Eugénia de Jesus Silva, Júlia Monteiro, Laurinda Luisa Couto, Elvira Ferro e Joaquina da Conceição.

Como principais objectivos, estas pioneiras do associativismo das mulheres, propunham-se: promover a instrução da classe, origem da sua infelicidade e ignorância; acabar com as agências inculcadoras de Lisboa, verdadeiros antros de prostituição e escolas de crime; promover o aperfeiçoamento profissional da classe; estabelecer uma casa onde as desempregadas possam dormir enquanto não arranjem colocação, libertando-as dos antros desmoralizadores que são as casas de pernoita.

Outras vantagens que se propõem por em prática à medida em que as possibilidades financeiras o permitirem, são: um subsidio na doença e no desemprego, e o pagamento das viagens de regresso à terra.

As dirigentes da nova associação foram as primeiras a levantar-se indignadas contra o infame projecto do Livrete, declarando-se dispostas a abandonar o serviço e a regressar ás terras de origem caso o Governador Civil teime na sua pretensão. A mesmo tempo recomendam a todas as trabalhadoras que não tirem o livrete e para não se assustarem com ameaças.

 Promovem assembleias de protesto e vão em delegação ao governo civil pedir explicações. Promovem reuniões conjuntas de todas as associações com sede na Travessa dos Inglezinhos, que resolvem fazer uma Reunião Magna, para a qual convidam os patrões a fazer-se representar, dado haver muitos que declaram estar contra o livrete.

Nesta primeira fase do movimento de protesto, o Governador manda suspender a aplicação do regulamento e anuncia que vai substituir o livrete por um cartão de identidade. Em nova ronda de reuniões das classes envolvidas, conclui-se que cartão de identidade e livrete são a mesma coisa e repudia-se a manobra. Declaram: Estamos dispostas quer ao abandono do trabalho quer a ir para a prisão, mas não nos curvaremos à lei de ser matriculadas. Bilhete de Identidade só o da associação.

Na Reunião Magna de 19 de Julho, em que a questão do livrete foi mais uma vez o centro da discussão, foi também dada uma informação sobre a luta em curso no Porto pela abolição da gorjeta e por uma percentagem sobre as contas, como forma de remuneração. Foi aprovado o envio de um telegrama aos camaradas, saudando-os, e feita uma subscrição que rendeu 66$50, destinados a custear a deslocação aquela cidade, de um delegado, para recolher mais informação sobre o movimento, afim de em Lisboa também se estudar o assunto.

Na primeira quinzena de Agosto, o Governador Civil decide avançar com a imposição, manda publicar o regulamento no Diário do Governo e proíbe o Associação das Domésticas de reunir, sob o pretexto de ainda não lhe ter sido atribuído o alvará. Declara que os empregados dos hotéis ficariam isentos do livrete, mas o facto é que no regulamento publicado continuam a figurar na lista das profissões abrangidas pelo mesmo.

Volta a ser convocada por todas as associações nova Reunião Magna, para dia 17 de Agosto de 1921, pelas 22 horas.

Com a sala apinhada de gente, onde predomina o elemento feminino, comparece um agente da polícia que declarou que por ordem do Governador civil, a assembleia não se podia realizar.

Os participantes não acatam a ordem por a considerarem atentatória da liberdade de reunião. E perante o atentado à honra e à dignidade das mulheres que o livrete significava, no meio da maior excitação, aprovam o seguinte manifesto:

«Considerando que o Governador Civil encetou um processo de violência, procurando impor pela força o que não conseguiu pela lógica, as associações de classe dos empregados dos hotéis, restaurantes e cafés, das empregadas domésticas de hotéis e casas particulares e a dos culinários, aprovam,

1)   A partir de hoje, 17 de Agosto, pela meia-noite, suspender o trabalho, em sinal de protesto, não retomando o trabalho sem que o regulamento do livrete seja revogado.

2)   Não retomar o trabalho sem ordem do Comité e acatar rigorosamente as suas determinações.»[36]

A aprovação da greve foi secundada por uma estrondosa salva de palmas e ininterruptos vivas à greve, salientando-se a exaltação e firmeza das mulheres. A polícia respondeu imediatamente com o encerramento da sede das associações.

No dia 18 greve foi total nos estabelecimentos de Lisboa.

No dia 19 de Agosto, a greve continuou, embora com diminuição da adesão devido à perseguição policial e ao boato de que o regulamento fora abolido, excepto para as domésticas.

Nessa manhã foram presas no Rossio, quatro criadas que andavam a distribuir o manifesto de greve. O mesmo acontecera na Praça da Figueira a Elvira Ferro e Lídia Cruz, dirigentes da Associação, pelo mesmo motivo, tendo-se constituído de imediato uma comissão para exigir a libertação das presas. Os operários do Parque Eduardo VII solidarizaram-se com os grevistas.

Em declarações à imprensa, o Governador Civil acusa a greve de ter intuitos políticos, ameaça os trabalhadores estrangeiros de lhes retirar as licenças de residência e de os mandar colocar na fronteira, numa acção concertada para incutir medo aos grevistas. Ao mesmo tempo informa ter mandado suspender a aplicação do regulamento aos empregados dos hotéis e restaurantes.

Ao terceiro dia de greve, o Comité, tomando o pulso à classe e considerando o grau de adesão, emite uma nota a dar por terminada a greve.

Nessa nota, o Comité saúda a unidade e o comportamento honroso e combativo dos trabalhadores e informa que foram recebidos pelo Governador, que os notificara e lhes prometera que iria revogar imediatamente o regulamento, no que diz respeito aos criados de hotéis e restaurantes.

Informam que o Comité não se dissolve, afim de continuar a actuar até que se consiga revogar também a parte que se aplica ás empregadas domésticas de hotéis e casas particulares. Apela a que nenhuma doméstica se apresente a tirar o livrete. Assim estará revogado pelas suas próprias mão antes de o ser pelo Governador.

Lídia, da direcção da Associação, responde de forma corajosa à carta de uma associada que não se conforma com o desenlace da luta: como querias tu, querida amiga, um movimento triunfante, quando a nossa associação começa agora a ser conhecida. Estamos a começar a nossa luta e já as patroas começaram a ceder terreno e a perder autoridade. Unamos as nossas forças. E nesse dia, um dia de luta bastará para rasgarmos um livrete que nunca aceitámos.

O facto de a polícia ter prendido arbitrariamente algumas colegas e as ter metido em calabouços misturadas com prostitutas, não nos deve assustar. Pois temos razão. Se essas raparigas tivessem dinheiro não seriam insultadas dessa forma ignóbil.

Tudo isto aconselha a que unamos vontades em torno da nossa associação para realizarmos as nossas aspirações.

A Associação de Empregadas Domésticas de Hotéis e Casas Particulares, criação de vanguarda das trabalhadoras de hotelaria, ainda viria a ter a sua bolsa de trabalho e a proporcionar aulas de instrução primária às suas associadas. Promoveu conferências sobre Higiene e Alimentação, orientadas pela médica Adelaide Cabete. Festejou o seu primeiro aniversário em Julho de 1922. Mas foi encerrada pelas autoridades, algum tempo depois, com a acusação hipócrita de ser um antro de prostituição.

 

[36] A Batalha, de 18 de Agosto de 1921, fl.1

 

GREVE, GREVE GERAL REVOLUCIONÁRIA, PELA ABOLIÇÃO DA GORJETA – OS ANARQUISTAS NO SINDICATO (1922 – 1925) 

A greve contra o livrete foi controversa no seio da direcção da Associação. Os seus elementos mais preponderantes, incluindo José de Almeida Duarte, um dos fundadores, editor de A Defesa durante uma década, não estiveram de acordo com a forma de luta adoptada. Mesmo assim, a greve irrompera contra a vontade da maioria da direcção.

No rescaldo da greve, Quintela Maia, presidente da Mesa da Assembleia-geral, ainda tentou aguentar o que restava dos corpos gerentes desautorizados, através de uma moção de confiança posta à Assembleia, mas a verdade é que meses depois foram todos substituídos, e uma direcção alinhada com os anarquistas assumiu o poder na Associação.

O desemprego e a carestia de vida não paravam de aumentar, e a crise provocava uma diminuição drástica do volume das gorjetas dos clientes, o que levava ao desespero todos os que tinham esta forma de remuneração.

Era uma questão recorrente. Já no tempo da monarquia houvera discussões sobre a supressão da gorjeta e da sua substituição por um salário regular fixo que evitasse que os trabalhadores fiquem à mercê da generosidade dos clientes e dos fluxos de trabalho.

Só que, este problema se tornou constante a partir da guerra, e não tem parado de se agravar. Tornou-se estrutural, não apenas por causa da crise sempre latente, mas também com a alteração do tipo de clientela que frequenta os estabelecimentos, menos propensa a gratificar, ou gratificando com quantias cada vez mais pequenas.

A nova direcção, de tendência anarquista, estabelece como principais frentes de luta, a melhoria dos salários, a abolição da gorjeta, a luta contra o desemprego, o cumprimento do direito ao descanso semanal e o reforço da Associação com a nomeação de delegados nas casas.

Juntamente com a ideia do sindicato único, que vem de trás, aparece nesta altura na Associação, uma noção muito clara da importância da organização para a luta dos trabalhadores, em particular a organização nos locais de trabalho.

No programa da direcção, pode ler-se: A Associação não será forte se não tiver células orgânicas nos locais de trabalho. Cristaliza e transforma-se num corpo central inerte, se não espalhar ramificações onde a actividade dos associados se desenvolve. Por isso, não devemos ser centralistas. Só deixaremos de o ser, com delegados em cada casa, em contacto permanente com os trabalhadores e ligados à Associação por uma Conselho Geral de Delegados. Afirmam.

A direcção preocupa-se também em melhorar a cooperação com as associações do Porto e de Braga, e apoia a constituição de associações de classe em Évora, Coimbra e Faro. Abel d’Andrade, Presidente em Lisboa, desloca-se à cidade alentejana para participar na assembleia constituinte, em 15 de Junho de 1922.

A direcção de Abel d’Andrade, defende a participação no III Congresso Nacional Operário e a filiação na CGT, em reunião magna, a 18 de Julho de 1922, e na Assembleia-geral de 26 de Outubro do mesmo ano, onde foi eleito o delegado ao Congresso da Covilhã. O facto de haver na Associação activistas que não estavam de acordo com a orientação da confederação sindical não foi impeditivo da participação da classe no congresso.

Os anos de 1922 e 1923, são anos de uma campanha enérgica e sistemática pela abolição da gorjeta e de reorganização e mobilização da classe para a luta. Fizeram-se mais de vinte assembleias e reuniões magnas em que a Abolição da gorjeta foi sempre uma das questões principais em discussão.

Finalmente, no mesmo jornal que noticia a morte de Manuel Rodrigues Correia, o número 136, de Maio de 1924, ultimo da primeira série de A Defesa, que morre com o seu fundador, é publicada a Tabela de Reclamações da Classe, aprovada em assembleia magna e acabada de apresentar ao patronato:

Hotéis – 10% sobre a despesa do freguês no serviço para o pessoal da mesa e 100$00 de ordenado mensal;

Restaurantes e Casas de Pasto – 10% nas vendas, e 100$00 mensais;

Cafés, Leitarias, Pastelarias e Esplanadas – 20% sobre as vendas e 300$00 mensais;

Praias e Termas – Hotéis: 10% sobre a conta para o pessoal de mesa, 200$00 mensais e passagens e habitações pagas. – Casinos: 20% sobre a conta, 200$00 mensais e passagens e habitações pagas.

TODASAS REGALIAS ADQUIRIDAS ATÉ HOJE DEVEM MANTER-SE – INCLUINDO A ALIMENTAÇÃO.

A acompanhar as reivindicações, a direcção da Associação, numa linguagem radical, faz um forte apelo à luta e responsabiliza os trabalhadores.

Os benefícios não caiem do céu, dizem. Os patrões, em vez de nos pagarem ordenados deixam-nos na condição de mendigos. Eles têm por si a força armada e possuem o dinheiro. Nós, os operários, temos a nossa Associação e a nossa unidade. A classe tem de decidir se quer ou não quer abolir a gorjeta. É preciso que aqueles que neste princípio de época balnear começam a fazer os contratos para as praias e termas, exijam que neles constem desde logo os benefícios que reivindicamos. Quem não o fizer, será considerado traidor à classe e deverá ter o castigo que merece. Os que ficam em Lisboa devem permanecer atentos para qualquer eventualidade.

Entre Maio a Julho realizaram-se algumas reuniões com a Associação dos Proprietários de Hotéis e Restaurantes, mas o único resultado obtido foi uma especulação infame do patronato, que a pretexto das reivindicações apresentadas, aumentou preço do café à chávena.

Esgotada a paciência e fartos de esperar sem resultados, convocam uma Reunião Mana para dia 4 de Setembro, ás dez da noite, a fim de apreciar as ‘demarches’ para a abolição da gorjeta e o estabelecimento de um salário. A reunião, muito concorrida, prolonga-se até de madrugada, aprova a greve a partir das quatro da manhã do dia 7, e apoia os protestos da população contra o aumento do café.

O Comité de Greve, no seu primeiro manifesto, responsabiliza a associação patronal pela perturbação causada pela greve na vida social, e por todos os prejuízos que advenham da luta.

Na sua edição de 10 de Setembro de 1924, o diário A Batalha, sob o título, greve simpática, descreve-a assim:

«Lisboa está a assistir a um dos mais interessantes movimentos grevisticos: o dos empregados dos hotéis, restaurantes e cafés. A Batalha dá aos grevistas todo o apoio moral, tanto mais que este movimento pela dignificação do trabalho não pode passar despercebido ás outras classes laboriosas. Esta greve, pela energia e pela dignidade que demonstram constitui um salutar exemplo para todos os trabalhadores. Sabemos que algumas das principais casas paralisadas se encontram na disposição de ceder ás reclamações. Entre os ‘habitués’ dos cafés que ontem percorremos e que, apesar de não terem pessoal se encontram abertos, a simpatia do público pelos grevistas é bem patente.»

No manifesto distribuído aos trabalhadores e à população, no terceiro dia de greve, o Comité de Greve regista e agradece as declarações do dono do Restaurante Tavares, a favor das reivindicações, e dá orientação para que ninguém regresse ao trabalho, mesmo no Tavares e noutras casas que pretendam aceitar as reivindicações, enquanto todos os patrões não cederem.

O Comité repudia ainda as calúnias de certa imprensa, em especial A Época, que diz que há um espanhol de óculos, há pouco tempo chegado a Lisboa, que foi o instigador da greve, sabendo-se que os únicos instigadores são os proprietários.

No mesmo comunicado, o Comité afirma que a classe não tem responsabilidade alguma no atentado à bomba contra o Hotel Borges, rejeitando qualquer insinuação a esse respeito.

Repudiam a arbitrariedade do Governador Civil, que proibiu uma Assembleia-geral, sob o pretexto de nela estar a participar um dirigente da União dos Sindicatos Operários de Lisboa. E perguntam, se a atitude do Governador, não terá sido uma révanche pelo facto de no Domingo não se ter realizado, por falta de pessoal, um almoço de homenagem que alguns amigos lhe queriam oferecer.

A Associação dos Culinários, não se atemoriza com mais uma proibição do Governador e acaba por reunir a Assembleia-geral proibida, com grande participação, e declara a greve de solidariedade, ao mesmo tempo que reivindica 50% de aumentos salariais para o pessoal das cozinhas e copas, juntando-se ao processo de luta dos Empregados de Mesa

Os trabalhadores da Figueira da Foz secundam a greve de Lisboa pelas mesmas reivindicações, e os de Coimbra e Porto, enviam mensagens de solidariedade e mostram-se dispostos a aderir ao movimento.

Os grevistas do Hotel Avenida Palace, quotizam-se e contribuem com 900 escudos para as despesas da luta e o seu exemplo desenvolve-se noutras casas.

No dia 11, numa enorme assembleia, os grevistas repudiam o truque do governador civil ao ameaçar que se desse algum atentado teriam de retomar de imediato o trabalho, e face à unidade e resistência demonstradas, aprovam a continuação da greve nos seguintes termos: manter a greve e retomar o trabalho só depois de satisfeitas as reivindicações, mesmo que haja provocações; protestar contra as proibições do Governador Civil; manter a ordem e repudiar qualquer violência desnecessária; intensificar o movimento em vários pontos do país.[37]

Na mesma Assembleia, é eleita uma Comissão com plenos poderes para negociar, composta pelos três dirigentes mais destacados da Associação: Manuel do Nascimento, Emílio Vila e Rodrigo Cardoso. Não tardaria que dois deles viessem a ser presos e o outro colocado na fronteira espanhola.

São desmontadas as afirmações do patrão dos patrões dos hotéis, Alexandre Almeida, que mente em entrevista ao Diário de Lisboa, quando afirma que os empregados de mesa recebem ordenado, e compara as gratificações dadas pelas administrações aos directores e empregados dos bancos, com o vexame da esmola que é a gorjeta dada aos empregados pelos clientes dos estabelecimentos hoteleiros.

Entre as diversas peripécias relatadas na assembleia, é elucidativa do ambiente que se vive, a do ‘papelucho’ distribuído aos hóspedes no hotel Francfort, a pedir aos clientes que gratifiquem o Chefe de Mesa e os dois criados que o estão a auxiliar, servindo-os com risco da própria vida.

Quanto ás explosões de petardos[38], continuam a afirmar que deve ser obra dos que pretendem desmoralizar a classe e desmobilizar a greve. E dizem. Vários grevistas têm recebido visitas da polícia, que pretende encontrar entre nós os bombistas, fazendo algumas prisões. Pois que visite à vontade e investigue, e verá que está errada. E se investigar bem, verificará que quem tem interesse em que haja atentados é a classe patronal e a reacção.

Têm toda a razão na análise que fazem estes camaradas ao atribuírem a possíveis provocações a explosão dos petardos. Mas nesta época, não é de descartar a possibilidade de os bombistas estarem nos ‘Camartelos, na Legião Vermelha ou noutros dos grupos anarquistas existentes.

Bento Gonçalves, na altura prestigiado sindicalista do sindicato do Arsenal da Marinha, partidário da ISV (Internacional dos Sindicatos Vermelhos) e mais tarde Secretário-geral do Partido Comunista Português, insuspeito de estar ao lado do patronato e da polícia, afirma: «o terrorismo operário era a arma com que se procurava suprir as contrariedades que se opunham ao êxito das reclamações económicas e reivindicações de outras espécies da classe operária. O recurso à bomba e o atentado pessoal constituía uma reacção que, pela sua natureza contraproducente mais encarniçava a reacção.»[39]

A assembleia termina com entusiásticos vivas à greve geral, à USO e à Batalha.

Dia 13, O Aero Clube de Portugal, escreve aos grevistas a pedir-lhes para servirem um banquete em homenagem aos aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral, devido ao êxito que tiveram na primeira travessia do Atlântico Sul, em 1922.

Chamados ao Governo Civil para discutir o assunto, saudaram o feito dos heróis da aviação, mas recusaram-se a servir o banquete.

Apesar da coacção, das proibições, do encerramento da sede, das prisões, todos os dias havia assembleias com grande e entusiástica participação, a maioria delas feitas em pleno Rossio.

Dia 14, debaixo de uma enorme manifestação, estiveram presentes delegados dos grevistas da Figueira da Foz, que informaram que manteriam a greve até à satisfação das reivindicações.

Foi lido um telegrama de apoio dos trabalhadores de Vidago. Outro das Caldas da Rainha, de protesto contra as prisões. Foi dada informação sobre a oferta voluntária de diversas quantias em dinheiro para ajudar os grevistas mais necessitados, tendo sido destacado com muitos aplausos, o envio de dois mil escudos pela Associação de Classe congénere do Porto.

Mas, a maior ovação foi para o anúncio de que ‘os amarelos’ que se encontravam a trabalhar na Brasileira e no Chave de Ouro, não tinham aguentado a pressão e se juntaram aos grevistas. E que, o cabecilha que os tinha aliciado a trabalhar fugira de forma inesperada e cobarde para o campo.

Ao décimo dia de greve, a pretexto da explosão de mais uma bomba, as autoridades ameaçam expulsar os estrangeiros, atacam duramente a Associação e fazem mais prisões. Aos camaradas presos, a classe dá garantias de que não arrepiará caminho na luta até à vitória e à sua libertação.

Dia 16, chega a Lisboa a noticia de que na Figueira da Foz duas casas cederam às reclamações.

No dia 18 de Setembro, são postos na fronteira, Manuel do Nascimento, Marcelino Garrido Alvares, José Maria Fernandez Iglésias e Fernando e Álvaro Lauresanea, com a alegação de que são grevistas espanhóis. O que é falso, visto que apenas um é espanhol, e mesmo esse é um cidadão a quem a Republica deve muito devido ao contributo que deu para a sua implantação.[40] Se há patrões espanhóis, porque são estes poupados, mesmo quando não cumprem as leis da República Portuguesa, perguntam.

No dia 23, pelas quinze horas, houve uma reunião com o patronato. Nessa reunião, a Associação dos Proprietários propôs o estabelecimento de uma taxa de serviço de 10% como forma de remuneração, pondo como condição que essa percentagem fosse acrescida ao montante da conta do cliente.

A Comissão Negociadora Sindical, não aceitou a proposta, por ela significar um brutal aumento dos preços para a população, com cuja luta contra a carestia de vida estavam solidários.

’Santa ingenuidade Tiveram o pássaro na mão e deixaram-no fugir. No seu idealismo voluntarista e radical, não perceberam que os patrões continuariam a aumentar os preços para manter as margens de lucro independentemente de haver ou não taxa de serviço. Não se deram conta que era estultícia pretender suster o aumento dos preços com o seu próprio sacrifício.

 O Conselho Jurídico da CGT inicia uma demanda para a libertação dos grevistas. Passados dezoito dias de greve, o comité registava 24 prisões, podendo haver mais, não identificadas pela organização. O calabouço nº 7 do Governo Civil está cheio de grevistas.

 A Batalha de 23 de Setembro informa que reina a confusão e o medo no seio do patronato, e que há entre os grevistas o mesmo ânimo do começo da greve. Conta ainda alguns episódios ocorridos na Baixa, ilustrativos do conluio entre patrões e autoridades: foram presos 14 empregados de cafés, e trazidos para o posto de polícia do Teatro Nacional. Momentos depois, aparece ali o senhor Carvalho, sócio gerente do Chave de Ouro, que se dirigiu aos presos, como se estivesse em sua própria casa, dizendo-lhes:

- Se querem ser postos em liberdade eu mando-vos libertar. Basta regressarem amanhã ao trabalho. Os trabalhadores detidos anuíram, e foi o senhor Carvalho em pessoa que mandou abrir as portas do calabouço. Já cá fora, perguntaram ao gerente do café se ou seu gesto significava que ia aceitar as reivindicações. Como este dissesse que não, mantiveram-se em greve.

 O senhor Carvalho viria a repetir a façanha, desta vez para soltar um amigo, deixando na prisão os dois companheiros que tinham sido detidos juntamente com ele.

A 24 de Setembro, uma delegação de mais de trezentos grevistas foram ao Governo Civil visitar os camaradas presos. Claro que uma delegação tão numerosa acabou por ficar à porta. Dois dias depois, a policia volta a encerrar a sede da Associação, no mesmo momento em que mais uma grande assembleia decide a continuação da greve e protesta contra o infame atentado dinamitista, executado no Francfort Hotel, considerando-o uma manobra perversa para que sejam feitas mais perseguições.

No dia 28 de Setembro, a Assembleia proclama a ‘ Greve Geral Revolucionária’ devendo a partir daí, cada grevista, sob sua inteira responsabilidade, utilizar os meios que entender para atingir os fins em causa.

Era o descalabro aventureirista. A confusão foi total. O conceito de Greve Geral Revolucionária que quando é usado conscientemente se aplica a uma greve cuja finalidade última é a mudança de regime político ou económico era aqui utilizado em desespero de causa.

A perseguição policial intensificou-se. No último dia do mês, uma comissão ainda se avistava com o dono do Hotel Inglaterra, que queria chegar a acordo. No dia 2 de Outubro, 25 dias depois de declarada, a greve estava esvaziada.

Dia três foram restituídos à liberdade, sem que tenha sido deduzida qualquer acusação, 17 dos grevistas presos, que assim que saíram se dirigiram directamente à Batalha para agradecer o apoio dado.

No descalabro final da luta, a direcção da Associação ficou reduzida a dois elementos.

O radicalismo anarquista tivera o seu epílogo natural.

O rescaldo foi dramático para muitas famílias e para a Associação. Mais de uma centena de trabalhadores foram despedidos. Alguns dirigentes foram marcados e perseguidos para sempre. Não voltaram a conseguir empregar-se na profissão. A Associação passou mais de dois anos à deriva, sem direcção eleita. É já depois do Golpe Militar do 28 de Maio de 1926, que se dão os primeiros passos de uma penosa e difícil reorganização.

A classe, na altura, considerou o desfecho do movimento uma derrota. Mas, nada voltou a ser como antes. Na Associação, estavam arquivadas mais de uma dezena de actas, assinadas pelos patrões a comprometerem-se com o cumprimento das reivindicações. Vários estabelecimentos, em Lisboa e na Figueira da Foz, passaram a praticar a taxa de serviço de 10% sobre a conta. Algum tempo depois, esta forma de remuneração estava generalizada nos hotéis do Estoril, e a pouco e pouco foi-se estendendo nos principais estabelecimentos de Lisboa e Porto.

 

[37] A Batalha, de 11 de Setembro de 1924, fl. 2

[38] Petardo sem metralha, apenas carregados com dinamite e enxofre, habitualmente usados pelos anarquistas para assustar os cavalos da GNR e fazer estatelar os seus cavaleiros na calçada.

[39] Gonçalves, Bento, Op. Cit  p. 104

[40] A Batalha, de 19 de Setembro de 1924, fl, 2

 

O COMEÇO DA NOITE FACISTA (1926 – 1935)

Para travar o ímpeto revolucionário do movimento operário e ultrapassar as suas dificuldades internas, o capitalismo não olha a meios para atingir os seus fins, e recorre à implantação de ditaduras fascistas por toda a Europa. Primo de Rivera já governava em Espanha, Mussolini já imperava em Itália, na Polónia, na Áustria e na Jugoslávia eram instaladas ditaduras, e Adolf Hitler preparava a ascensão ao poder na Alemanha.

Em Portugal, também acabou por acontecer. No dia 28 de Maio de 1926, eclode em Braga o Golpe Militar vitorioso tão demoradamente preparado e esperado pela reacção. O General Gomes da Costa, vestiu a farda, e vaidoso, de espada ao ombro, passeou os galões pelo pais, de Norte a sul, em paradas militares, com o Povo a assistir, e sem qualquer resistência séria naqueles primeiros dias, proclamou que os problemas da Nação só seriam resolvidos com a instauração de uma Ditadura Nacional.

Propunha-se demitir o Governo, castigar os falsários das notas do Banco de Portugal, reconstruir as estradas, restaurar as finanças, restabelecer a ordem pública, moralizar a administração pública, e pôr fim à repressão sobre o trabalho. E para sossegar os mais desconfiados, afirmava que a Ditadura só duraria o tempo necessário para arrumar a casa.

Tal programa foi bem aceite e festejado por muita gente, da direita à esquerda, incluindo muitos trabalhadores e sindicalistas. Os ferroviários do Barreiro chegam mesmo a declarar uma greve de apoio aos golpistas no próprio dia 28 de Maio.[41]

Mas o operariado mais esclarecido não tem grandes ilusões.

O II Congresso do Partido Comunista Português, cuja realização coincidiu com o fatídico dia, alerta para os perigos do golpe militar e caracteriza-o de fascista.

Foi ainda da CGT, que acabou por surgir a primeira tentativa de resistência através da proclamação da Greve Geral Revolucionária para 1 de Junho de 1926.

Mas a divisão existente no movimento sindical, o seu consequente enfraquecimento, e as debilidades de direcção da central, aliados ás medidas de coação tomadas pelos golpistas, impediram o desenvolvimento da luta. O suplemento de A Batalha com a proclamação é proibido de circular e a greve foi abortada.

 Ao contrário do que prometera, a Ditadura militar actuou de forma desorganizada na governação, colocou-se desde o início ao serviço do grande capital, e desenvolve toda uma politica de financiamentos ás grandes empresas, que veio a agravar a situação económica e financeira do país em vez de a melhorar.

Ao mesmo tempo, em vez do fim da repressão sobre o trabalho conforme prometera, a Ditadura intensifica essa repressão.

No dia 6 de Fevereiro de 1927, os trabalhadores dos cafés do Rossio são mais uma vez testemunhas das façanhas da polícia e da GNR, que perseguem ferozmente grupos de manifestantes. Nesta acção policial, A Brasileira é encerrada porque as autoridades consideravam que o conhecido café se tinha transformado em centro de comícios revolucionários[42].

No mesmo dia, o Governo manda as forças militares intervirem na greve dos ferroviários do Sul e Sueste, que tinham paralisado todo o tráfego a sul do Tejo. O sindicato ferroviário, que apoiou o Golpe fascista de 28 de Maio, fazia agora autocrítica pelos mesmos meios e colocava-se do outro lado da barricada. O aventureirismo e a crença no «reviralho»[43] como forma de alterar a situação politica e social tinham destas coisas.

A escalada repressiva prossegue. E, no dia 28 de Abril de 1928, António de Oliveira Salazar, que já fora Ministro das Finanças por um breve período de 15 dias em Junho de 1926, toma novamente posse do mesmo cargo político, desta vez para se manter no poder mais de quarenta anos durante uma das épocas mais sombrias da nossa História. Por detrás dele, desde a primeira hora, e até à sua morte, estiveram sempre a Igreja Católica, os monárquicos, a extrema-direita, o grande capital, e todas forças retrógradas do país.

Na associação de classe da hotelaria continuava-se a sofrer as sequelas do descalabro da greve de Setembro de 1924 pela abolição da gorgeta. Só um ano depois de imposta a Ditadura, no dia 1 de Abril de 1927, surge A Defesa nº 1, segunda série, tendo como director o velho activista anarquista Luciano Gil Montes, e trazendo inscrito, o sintomático aviso. «Este número foi visado pela Comissão de Censura

Entre os associados tinha crescido o número dos que defendiam que os estrangeiros, os galegos, deviam ir para as suas terras e dar o lugar aos portugueses que precisavam de trabalho. Este grupo xenófobo, que incluía ex-dirigentes da Associação, colocava-se claramente ao lado da Ditadura.

Em determinada ocasião foram mesmo «junto do Ministro do Trabalho solicitar que, enquanto houvesse criados portugueses sem trabalho, não fossem empregados os que fossem estrangeiros.»[44]

Gil Montes indigna-se com esta atitude dos «componentes de uma classe onde não deve haver bairrismos, onde se não deve ver espanhóis, franceses ou portugueses, mas apenas homens ou trabalhadores que ganham o seu sustento com o seu esforço dentro da mesma indústria. Muitos camaradas, fundadores da Associação, verificaram que estavam a ser traídos, dentro da casa para onde contribuíam com a sua quota e davam a sua solidariedade num esforço comum» e por isso «pediram a sua demissão».

Mas esta fidelidade do velho anarquista que se orgulhava de ser o sócio fundador numero 25, ao princípio do internacionalismo, não o impede de, ao verberar o facto de os funcionários públicos «de ordenados chorudos» se escapulirem das repartições com a «benevolência dos superiores» para irem fazer concorrência à classe, nos banquetes, casamentos e baptizados, concluir: «O 28 de Maio veio para moralizar os costumes, sanear os serviços do Estado, fazer justiça, não permitir acumulações que possam prejudicar seja quem for,» portanto, «ou criados de mesa ou empregados do Estado».[45]

 A Comissão Executiva em exercício na Associação vai ainda mais longe, e enquanto a parte mais combativa do operariado já luta como pode contra a Ditadura, rende preitos de gratidão ao Chefe do Distrito, major Luiz de Moura e ao comandante da polícia, Ferreira do Amaral.

Isto porque, face ao pedido de auxílio que a Associação lhes fizera para que apoiassem a fiscalização da lei do horário e do descanso semanal, estes militares policias mandaram publicar na Ordem do Corpo de Policia de 22 de Setembro de 1926, o seguinte:

«Que se remetam ás esquadras e postos, exemplares dos bilhetes de identidade usados pelos fiscais da referida Associação a quem a policia deve prestar o auxílio aludido no decreto 5516 de 7 de Maio de 1919 e respectivo regulamento de 21 de Maio do ano findo.[46]»

No princípio, a Ditadura seguiu o exemplo de Afonso Costa no seu primeiro Governo, e acarinhou a actividade dos socialistas, procurado utilizá-los contra a componente mais combativa da classe operária. O Partido Socialista, chefiado por Ramada Curto, colocara-se numa posição de colaboração expectante. E mais tarde, o principal dirigente socialista, passou mesmo a colaboracionista activo, ao aceitar a encomenda que lhe foi feita por Salazar através do Intendente Geral da Policias, para traduzir e adaptar para Portugal, a Carta del Lavoro, de Benito Mussolini.[47]

Nesta fase, os socialistas eram a tendência dominante na Direcção da Associação da hotelaria. E, embora ali houvesse gente conformada, e até simpatizantes do novo regime, a maioria dos activistas não se conformava com a nova situação politica.

Na assembleia-geral de 18 de Maio de 1927, os sócios presentes e parte da Direcção encontravam-se de candeias ás avessas. De tal modo que, o Graça Pereira, Presidente da Mesa, solicitou a policia a participar. O que leva Gil Montes a rebelar-se e a apelar à classe para que não consinta a repetição de tais actos, relatando: «que se saiba, nunca uma Assembleia foi ameaçada de ser evacuada pela polícia, ao mínimo gesto que desagradasse ao Presidente. E as coisas não ficaram por aqui. Um polícia usou da palavra, autorizado pela presidência, e intimou que ali, quem mandava primeiro era o presidente, e depois, a polícia, e que, todo aquele que não estivesse em ordem seria expulso da sala. E o Presidente, conivente, acrescentou que todos os que fizessem apartes fossem logo postos fora da sala.»[48]

Neste período da Ditadura, a única actividade que os sindicalistas da hotelaria conseguiam levar a cabo com alguma regularidade era a de fiscalização do cumprimento do dia de descanso semanal, e o envio para tribunal dos patrões infractores, que eram muitos. No resto, o essencial das suas forças era gasto em conflitos internos entre grupos, dos quais se destacavam os galegos e os portugueses que estavam com eles, que defendiam o sindicalismo tradicional, e os «nacionais» que queriam correr com os galegos, e «obrigá-los a regressar à Galiza nas bicicletas em que haviam chegado», contestando a sua influência na Associação.

Entre 1928 e 1932, o desemprego, o não cumprimento da lei do horário e do descanso semanal, aumentaram drasticamente. Muitas empresas encerraram, outras reduziram a laboração e os salários, outras aumentaram o horário de trabalho, e nos cafés e restaurantes alastrou novamente a prática de os patrões ficarem com parte das gratificações dos empregados.

Com os sindicatos enfraquecidos e o patronato de costas quentes com a Ditadura, as lutas reivindicativas dos trabalhadores diminuíram. Mesmo assim, ainda se travaram combates importantes em alguns sectores. Os operários da construção naval, por exemplo, levam a cabo uma greve de um mês, envolvendo mais de dois mil carpinteiros e calafates, que terminou com os aumentos salariais reivindicados.[49]

Os operários da Companhia Nacional de Navegação fizeram também uma greve de dois meses que apesar da brutalidade da repressão sobre eles exercida terminou numa vitória completa. Cinco mil pescadores de Setúbal levam a cabo um movimento grevistico que durou três meses e terminou em vitória parcial.

O Nacional-Sindicalismo, movimento nazi-fascista, faz também a sua aparição neste período conturbado. Admirador fanático de Hitler, Rolão Preto introduz em Portugal o culto da farda e da violência como forma de intervenção politica.

Funda os «camisas azuis» e industria os seus seguidores em métodos paramilitares, e nos ritos nazis, entre os quais a célebre saudação à romana, de braço levantado, mais tarde adoptados pelo Mocidade Portuguesa dirigida por Marcelo Caetano. De discurso inflamado, populista, proclama-se «anti-comunista, anti-democrático, anti-burguês, anti-capitalista e anti-conservador».

Apesar do discurso frequentemente anti-patronal, e de se auto-proclamarem revolucionários, diziam querer fazer uma revolução de 3ª via, o Nacional-Sindicalismo nada tinha a ver com o sindicalismo.

Esse facto não impediu esta ideologia de ganhar adeptos em alguns sindicatos, poucos, onde o nacional-sindicalismo viria a provocar cisões, como aconteceu nos bancários, na Carris, e na da hotelaria.[50]

Na hotelaria foram os activistas que pretendiam a expulsão dos estrangeiros para que dessem lugar aos portugueses desempregados, os seduzidos pelo discurso nazi, nacionalista e chauvinista, de Rolão Preto e seus seguidores.

Mesmo com os malefícios da crise capitalista dos anos de 1929 e 1930, que trouxe mais desemprego e fome, e com a continuação das dissidências internas, com o Nacional-sindicalismo a ganhar força, a Associação aumentou o número de sócios, e foram eleitos novos dirigentes, que iniciaram um processo de reorganização e conseguiram dar maior dinamismo à actividade sindical na hotelaria.

Em 1931, um desses dirigentes, José Augusto Machado, empregado de escritório em Lisboa, «militante sindical destacado do PS que tentou pôr os sindicatos locais a reboque de Ramada Curto»[51] também dirigente da FAO, a pequena central sindical de influência socialista, foi designado delegado dos trabalhadores portuguesesà conferência da OIT[52], em Genebra, num processo que não foi pacífico na Associação, nem no movimento sindical em geral.

Depois do seu regresso de Genebra, José Augusto Machado é admitido na Associação de Classe da Hotelaria como activista sindical a tempo inteiro.

Em alguns, a designação do delegado português à OIT de entre os sindicalistas da hotelaria, despertou inveja, devido à oportunidade que significava de uma viagem de um mês à Suiça, a custas do Estado, e ao protagonismo social que tal representação proporcionava.

Para outros, como o sindicalista e dirigente do Partido Comunista, José de Sousa, a designação do sindicalista socialista eram «os reformistas a ajudar afincadamente o Governo na preparação da delegação a Genebra»[53].

De facto, os socialistas, apesar de serem a terceira força nos sindicatos, tinham monopolizado a representação dos trabalhadores portugueses à OIT. Desde que em 1919 o seu Secretário-geral fora o primeiro delegado dos trabalhadores, outros militantes do PS se lhe seguiram. Augusto Machado que havia sido o delegado dos trabalhadores nomeado pelo Governo para ir Genebra em 1931, bisou a representação em 1932.[54]

Por convicção, por ignorância, ou por manipulação, a verdade é que largas camadas da população apoiavam o regime fascista em evolução. A União Nacional, partido criado para lhe dar sustentação orgânica, encarregava-se da organização das acções de apoio popular «espontâneo».

Em 29 de Junho, Salazar, que já era na prática o «Chefe», vê essa situação formalizada oficialmente com o convite que lhe é feito por Carmona para formar Governo.

Num dos discursos que faz pouco tempo depois, o Chefe da Ditadura declara que o trabalho não é um direito, mas sim, um dever.

Em 10 de Novembro de 1932, após a conclusão do processo de reestruturação sindical em que a Associação mudou de nome, saiu o nº 1 de O Dever, órgão da Associação de Classe dos empregados da Industria Hoteleira e Profissões Anexas, sendo seu director, José Pinho Ribeiro, Presidente da Associação. É um jornal muito bem feito, de redacção cuidadosa, excelente apresentação gráfica, composto e impresso na cooperativa «A Casa dos Gráficos» – Travessa da Água de Flor, 35, Lisboa.

No editorial, intitulado «o nosso dilema», assinado pela direcção do sindicato, explica-se o porquê do nome do jornal, e define-se uma orientação, que também nos mostra que a ideologia dominante na composição dos corpos gerentes é oposta à do regime político instalado no país. Escrevem:

«Bastaria o exame do título do nosso jornal «O Dever», para se conhecer o fim da nossa orientação…contribuir para que todos os que exercem a sua actividade na indústria hoteleira se convençam de que têm, antes de tudo, de cumprir o seu dever social…não nos dedicaremos a atacar sistematicamente os patrões, só porque pertencem a uma classe que, pela natureza dos seus interesses, é logicamente antagónica à que representamos… a nossa directriz consistirá pois, em que o dever seja a norma basilar, para que pelo seu cumprimento, a classe adquira a autoridade moral de exigir que os industriais cumpram o seu…não queremos direitos sem deveres, mas reivindicaremos com todas as nossas energias, que, cumpridos os deveres, se nos concedam os correspondentes direitos.»

O Dever inscreve sob o título, uma das consignas célebres extraídas da obra de Karl Marx. Curioso é o que nos conta a Direcção sobre as razões que puseram Marx contra Marx, numa das suas reuniões. A Comissão do jornal propôs que um dos «conceitos» do filósofo alemão «figurasse para definição da orientação demarcada, não só do órgão de imprensa, mas também da Associação de Classe.»

A ideia foi aceite por unanimidade, mas o problema é que uns defendiam que o lema a adoptar devia ser: «Proletários de todos os países uni-vos» e outros preferiam: «A emancipação dos trabalhadores há-de ser obra dos próprios trabalhadores». Face ao impasse, foi feita uma votação, tendo a segunda hipótese vencido por 6 votos contra 5. Nesta data já a consigna que foi derrotada encimava o cabeçalho do jornal Avante! Órgão oficial do Partido Comunista Português.

Em A Questão Social no Salazarismo, Fátima Patriarca, para minimizar a importância da afirmação que Bento Gonçalves faz num dos seus artigos sobre a crescente influência da CIS no movimento sindical, dá como exemplo do que considera como fragilidade da argumentação, o facto de o Secretário-geral do PCP nomear a Associação de Classe dos Culinários como tendo sido uma das que aderiram à CIS.

 Para provar o seu ponto de vista, a investigadora refere a fusão dos culinários pouco tempo depois com as outras associações da hotelaria, de influência socialista, num só sindicato, mandando ás malvas a filiação na central afecta aos comunistas.[55]

Mas, a conclusão a tirar da decisão dos culinários em fundirem-se com as outras associações congéneres pode bem ser outra. A de que a orientação do PCP sob a Bento Gonçalves, e os activistas dos culinários, comunistas e anarquistas, privilegiaram o processo de reforço orgânico e de unidade então em curso na hotelaria, mesmo sabendo que este era liderado por elementos do PS ou próximos deste partido

O resultado da votação em torno das consignas marxistas na Associação pode muito bem reflectir a influência de socialistas, anarquistas e comunistas na direcção da nova associação resultante da fusão, com os socialistas a terem mais um voto na sua proposta do que os comunistas e os anarquistas juntos. Muito provavelmente com o voto de desempate de José Pinho Ribeiro, o Presidente, que na altura era independente, pois só viria a filiar-se no PS posteriormente.

O cozinheiro Aleu Rocha, Presidente dos Culinários, era comunista e assim se manteve no seu percurso de activista por muitos anos. E viria a estar novamente com Pinho Ribeiro nas grandes assembleias que em Janeiro 1945 escorraçaram os salazaristas do Sindicato Nacional, após um longo processo de luta interna em que os fascistas recorreram à chapelada descarada em eleições sucessivas, sem que mesmo assim tivessem conseguido manter-se no poder no sindicato.[56] Processo de luta que culminou na eleição para o sindicato de alguns dos activistas que eram dos corpos gerentes da associação de classe da hotelaria, em 1932/33 e em que Pinho Ribeiro voltou a ser o Presidente da Direcção.

Pode ainda deduzir-se que a influência minoritária dos comunistas e anarquistas na nova associação foi suficiente para a levar a aderir à greve geral de 18 de Janeiro de 1934 mesmo contra a orientação expressa do Partido Socialista.

É também no primeiro número de O Dever que surge, pela pena de Pinho Ribeiro, a explicação para a alteração do nome do sindicato, e a defesa de que a actividade hoteleira deve ser considerada uma indústria.

«Tanto o hotel como o restaurante e anexos são uma indústria», diz. «Há, em qualquer indústria, duas classes de trabalhadores – os manipuladores e os vendedores – aqueles são operários e estes são empregados do comércio –. Na indústria hoteleira, na cozinha e nas repartições anexas, fora o Chefe, são todos operários, pois fabricam, com matéria-prima, os produtos para venda ao público. Pertencemos pois, tanto à classe operária como à comercial», conclui. Pinho Ribeiro afirma-se convicto de ter demonstrado que é ilógica a classificação de domésticos existente para os trabalhadores de hotelaria, ou de se pretender que estes sejam uma classe especial, diferente das outras.

Uma outra notícia, em O Dever, dá-nos uma ideia da apertada vigilância a que estava sujeita a actividade dos sindicatos, nesta fase da Ditadura, embora o pior ainda estivesse para vir. Diz-nos a notícia:

«Para comemorar o 27º aniversário da sua fundação, a Associação de Classe dos Operários Confeiteiros e Pasteleiros de Lisboa, promoveu uma sessão solene que se realizou em 23 de Outubro.

Presidiu, o camarada Luiz Veríssimo dos Arsenalistas do Exército e secretariaram Carlos de Oliveira Faneco e José Pinho Ribeiro, respectivamente dos fragateiros do Porto de Lisboa e Empregados na Industria Hoteleira.

A sessão que prometia ser uma bela jornada de afirmações operárias e de propaganda associativa resultou pouco menos que nula pela atitude que tomou a respectiva autoridade que, sem qualquer motivo justificativo, começou a limitar tanto o uso da palavra dos oradores que estes terminaram por não dizer nada. A tal ponto que os quinze oradores inscritos, em dez minutos, concluíram todos as suas considerações, dando-se por terminada a sessão vinte minutos depois de ter sido aberta.»[57]

O patronato, que simpatizava com os «nacionais» que promoviam a divisão da classe, ao ver que a Associação se reorganizava, e até tinha tido a capacidade de voltar a publicar um jornal, não perdeu tempo. Através do Hotel Palácio do Estoril, onde se encontrava um dos principais núcleos de influência dos «cisionistas», moveu um processo-crime ao director do órgão da classe, devido a uma notícia que considerava as multas aplicadas ao pessoal e a forma injusta como era feita a divisão do «caixa» naquela unidade hoteleira, um autêntico «roubo».

O Pinho Ribeiro foi condenado a uma pequena multa pecuniária, por abuso de liberdade de imprensa pelo tribunal de primeira instância, mas recorreu, e veio a ser absolvido pelo tribunal da Relação. O tribunal de recurso aceitou o argumento do advogado de defesa de que, «o artigo com a palavra incriminada era uma manifestação de descontentamento contra uma provada injustiça, e não fazia sentido que pelo facto de se solicitar equidade, a justiça condenasse aqueles que a pediam». Alem disso, o tribunal teve em conta o facto de a palavra «roubo» estar entre aspas.

O ano de 1933 é o ano da consolidação e institucionalização do regime fascista.

Em Janeiro, a polícia politica é reorganizada, e com poderes reforçados, reconvertida em Policia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE). Grande parte dos membros desta polícia são recrutados entre os piores facínoras da sociedade, rufias, chulos, militares sádicos, e entre os renegados, traidores e tansfugas de forças politicas e sociais que se opõem ao fascismo.

No princípio de Setembro são promulgados alguns dos principais diplomas do corporativismo, em que se destaca o Estatuto do Trabalho Nacional (ETN), que nega a luta de classes, obriga as associações de classe a aprovar estatutos, em conformidade com a nova lei, e a apresentá-los para homologação ao Governo até 31 de Dezembro de 1933, data em que serão dissolvidas e perderão os seus bens, caso esses estatutos não sejam homologados.

A Associação da hotelaria integra-se no movimento de contestação ao estatuto corporativo, mas, face a um desfecho desfavorável previsível, inicia um processo de reorganização e activação da cooperativa.

Para o efeito, realiza, com algum êxito, uma campanha com o fim de tornar cooperantes os número máximo de associados possível.

 Os estatutos foram alterados, incluindo a mudança do nome, para que deixasse de se chamar cooperativa da Associação, e passasse a designar-se, dos trabalhadores de hotelaria, de modo a ficar claro que se regia por outra legislação e a não correr o risco de vir a ser arrastada pelo processo fascisação dos sindicatos.

Estas medidas seguiam a orientação do Partido Socialista que apontava aos trabalhadores o entrincheiramento na actividade cooperativa, dado que: «Excluído das lutas sindicais, excluído das lutas politicas, umas e outras postas de parte, o operário português pode e deve integrar-se completamente no associativismo económico, no associativismo educativo».[58]

No seu último número, datado de 24 de Dezembro, o jornal da Associação, O Dever, tenta publicar integralmente o artigo em que o Secretário-geral do PS aponta aos trabalhadores o caminho das cooperativas, mas a censura proíbe essa publicação.[59]

A maioria dos activistas da hotelaria continuavam assim a seguir a linha reformista, e alimentavam a ideia ingénua de que se a Associação fosse dissolvida, poderiam continuar unidos e a lutar no âmbito da cooperativa, ludibriando o Governo no seu objectivo de acabar com as associações de classe.

Tais ilusões viriam em breve a ser desfeitas com o encerramento e apreensão dos bens da cooperativa pelas autoridades fascistas.

O melhor que os activistas conseguiram com o seu artifício, depois de mais de dois anos de diligências, foi a abertura de um processo de negociação com os «nacionais» sob os auspícios das autoridades, com o objectivo de salvaguardar os interesses materiais dos accionistas da cooperativa, e de integra-la no «sindicato nacional» promovendo ao mesmo tempo a entrada colectiva dos seus associados no sindicato corporativo[60].

 

 

 

[41] Teixeira, Armando Sousa, BARREIRO – Uma História de Trabalho Resistência e Luta (1926/45) Edições Avante, Lisboa Outubro de 1997 p. 170

 

[42] Almeida, Pedro Ramos, Biografia da Ditadura, Edições Avante, Lisboa, 1999 p. 64

 

[43] Em Duas Intervenções, editorial Avante, Lisboa, 1996, Álvaro Cunhal caracteriza assim o «reviralho»: «foi uma tendência característica dos meios republicanos …a concepção de que com a participação de alguns militares e civis dava-se um golpe, tomavam-se posições estratégicas e atirava-se abaixo o Governo.»

 

[44] A Defesa, nº 1-2ª série, de 1 de Abril de 1927 fls. 1

 

[45] Idem, fls. 2

 

[46] Ibidem, fls. 1

 

[47] Gonçalves, Bento, Op. Cit. p. 128

 

[48] A Defesa, nº 3, 2ª série, de Setembro de 1927

 

[49] Soares, Pedro, Bento Gonçalves – Organizador do Partido, in Os Comunistas, Op. Cit. p. 37

 

[50] Rosas, Fernando IN História de Portugal de José Mattoso Vol. 7 Editorial Estampa

 

[51] Gonçalves, Bento, op. Cit. P128

 

[52] A Voz da Razão, nº 5, de 1 de Abril de 1933, fls. 4, nº 6, de 1 de Maio de 1933, fls. 3 e nº 8, de Agosto de 1933, fls. 4

 

[53] Relatório sobre a situação em Portugal, enviado à Profintern, ICS, Doc. 251, maço 171, caixa 8

 

[54]  Patriarca, Fátima, A Questão Social No Salazarismo 1930 – 1947, Imprensa Nacional – casa da Moeda Maio de 1995, Vol. I pp. 198 – 199

 

[55] PATRIARCA, Fátima, A Questão Social no Salazarismo 1930 – 1947, 2 vol. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Maio de 1995, pp. 64-65

 

[56] Actas, da Assembleia-geral do Sindicato Nacional dos Profissionais na Industria Hoteleira e similares do Distrito de Lisboa, nº 45 de 18 de Janeiro de 1945, nº46 de 16 de Maio de 1945 e nº 47 de 12 de Dezembro de 1945.

 

[57] O Dever, nº 1 de 10 de Novembro de 1932, fls. 2

 

[58] Republica Social, nº 612, de 16 de Dezembro de 1933, citado em, Os Sindicatos Contra Salazar…

 

[59] Boletim nº 91 da Comissão de Censura de Lisboa – cortes registados na semana de 18 a 24 de Dezembro de 1933, citado em, Os sindicatos contra…   

 

[60] Relatório e Contas da Cooperativa dos Empregados na Industria Hoteleira e Profissões anexas -  Relativo ao período de Janeiro de 1933 a 31 de Outubro de 1936

 

 

TRAIDORES, CISIONISTAS, «NACIONAIS» E FASCISTAS

Como já se viu não foram poucos os sindicalistas de todas as tendências que aderiram logo de início ao fascismo. Uns por oportunismo e traição, outros, empurrados pelo espectro do desemprego e da fome que os fazia deslizarem facilmente para a xenofobia, estimulada pelo regime, outros ainda, convertidos, ou entusiasmados, e sinceramente convencidos de que os fascistas queriam promover a justiça social e a concórdia nacional.

O fascismo escondia-se por detrás de um discurso que não tinha pudor em utilizar os vocábulos justiça social, socialismo, revolução, trabalho, e outros conceitos caros aos activistas sindicais, para levar a água ao seu moinho.

Na hotelaria, em finais de 1929 já existia um grupo activo de «nacionais» com peso na Associação, que tenta apoderar-se dela, primeiro por via eleitoral, e não o tendo conseguido, desenvolvendo depois uma guerra violentíssima à direcção legítima. Mas antes de se lançarem na cisão, trataram de aliciar um funcionário da Associação, e com ele, sub-repticiamente «extraíram cópias de documentos para lhes servirem de base à montagem de um sindicato».

«Arvoraram o pendão do nacionalismo para extasiar as gentes ignaras e mover guerra de morte aos galegos, seus companheiros de trabalho». Guerra em que tinham como argumentos principais a acusação de os galegos controlarem a Associação, e de assim, «tutelarem os portugueses quando deviam ser eles os tutelados». E, a reivindicação de que «enquanto houvesse portugueses desempregados não fosse dado trabalho a estrangeiros». Estas duas questões seriam o mote que iria engrossar o movimento dos «nacionais» até à cisão.

No terreno ideológico, o maior confronto é agora entre o sindicalismo internacionalista e solidário, que considera que «o trabalho não tem fronteiras» e o nacional-sindicalismo, o «regime alimentar papas de Rolão» que os «nacionais» adoptaram, ao «filiar-se num agrupamento politico, composto por meninos de leitarias a quem agora começa a chegar a fala, e que não tendo modo de vida certo, criaram um jornal para se entreterem»[61].

A cisão formal foi consumada pelos «nacionais» no dia 10 de Abril de 1931, na Rua dos Correeiros, nº 284-4º andar, em Lisboa. Nesse dia e local, reuniram-se pelas 21 horas, «30 indivíduos do sexo masculino, profissionais da industria hoteleira, para apreciar a crise que os portugueses atravessam por motivo da concorrência que os estrangeiros lhes estavam fazendo… por isso foi resolvida a formação de um sindicato em que só pudessem ser associados indivíduos portugueses, denominado, Sindicato Nacional dos Profissionais da Industria Hoteleira e Similares.»[62]

A Assembleia-geral seguinte para aprovação de estatutos, com 79 presenças, realizou-se já na Rua da Oliveira ao Carmo, nº24, 1º, naquela que seria a primeira sede do sindicato «nacional».[63]

 A reunião termina com a aprovação dos convites para a sessão solene de inauguração da bandeira e da tabuleta do sindicato. São convidados «o Ministro do Interior, o Governador Civil, o Conselho Nacional de Turismo, o Intendente Geral da Segurança Publica, a Associação dos Empregados dos Cafés Restaurantes e Hotéis do Porto, todos os grémios do patronato e todas as associações de classe, excepto as situadas na Travessa dos Inglesinhos.»[64]

Se mais informação não houvesse, este lote de convidados já seria suficientemente elucidativo para nos mostrar a diferença de concepções sindicais em confronto. Era impensável que na Associação se convidasse o inimigo de classe, o ministro das polícias, e o próprio chefe da polícia para uma iniciativa festiva da classe.

Mas as coisas não eram ainda pacíficas no que respeita à conotação do sindicato «nacional» com o regime fascista. Por esta altura, um membro da direcção lamenta-se pelo facto de as outras associações de classe os considerarem fascistas, ao mesmo tempo que as autoridades os consideravam bolchevistas.

Estava-se ainda no período em que o núcleo duro dos «nacionais» não se atrevia a exibir abertamente a sua orientação fascista. Aliás, no «Sindicato Nacional» havia muitos trabalhadores e activistas que tinham aderido ao movimento por razões profissionais e outras que nada tinham a ver com a adesão ao fascismo.

Na sessão solene para assinalar o 2º aniversário do sindicato ainda existem fortes contradições entre associados quanto à aceitação das regras do regime. Henrique dos Santos Vaz activista prestigiado, só depois de muito instado aceita presidir à Assembleia-geral. Começa por ler uma saudação da associação congénere de Coimbra, e anuncia «com bastante mágoa que tem de denunciar que, por ordem do representante da autoridade, os representantes dos sindicatos e dos grémios não podem fazer uso da palavra, a não ser para saudar o sindicato. Só estava autorizado a falar o conferencista convidado pelo presidente da Direcção.»[65] A acta desta assembleia assinala ainda o o seguinte: ao notarem «que o convidado se inclinava mais para a politica situacionista do que para os meios associativos…soaram algumas palmas, mas com pouco entusiasmo»[66].

O nº 1 de A Voz da Razão sai a 1 de Dezembro de 1932, como órgão do Sindicato «Nacional». O Director é o Rodrigo Cardoso, Presidente do Sindicato. No primeiro editorial do novo órgão, intitulado «O Caminho», podemos ler:

«A Voz da Razão é um jornal de classe não para combater outra classe mas sim para defender os direitos dos portugueses contra os maus camaradas estrangeiros…será o ferro em brasa que causticará esses estrangeiros e os portugueses que atropelem os direitos dos nacionais.»

A Direcção dos «nacionais» resolveu por esta altura levar a cabo uma purga, sob o lema, mais vale poucos, «puros» e «duros», do que albergar no sindicato quem lança a confusão e não compreende os novos ventos do «sindicalismo». Durante algum tempo sucedem-se as expulsões e os processos disciplinares aos associados devido à «qualidade exigida» para se poder estar no sindicato.

O Governo de Salazar, em conformidade com a sua natureza, alimenta o chauvinismo, e manda publicar em lei uma disposição que impõe que «nenhum estabelecimento poderá diminuir o número de empregados ou operários portugueses ao serviço desde que empregue indivíduos de nacionalidade estrangeira.»[67]

É nas acções em que os «nacionais» visam expulsar os galegos para a Galiza, «nas bicicletas em que aportam à sede da Associação, na Travessa dos Inglesinhos, à procura do tio, do primo ou do padrinho, que ali se acoitam» que a confrontação atinge maior dramatismo.

A contabilidade do número de estrangeiros e de portugueses em cada empresa, e a reivindicação de uns serem substituídos pelos outros, era agora o principal eixo da acção dos «nacionais».

Num artigo assinado pela direcção, intitulado «porque se fundou o sindicato» dá-se conta de um levantamento em «56 das melhores casas da indústria em que, 235 empregados de mesa são estrangeiros, contra 46 nacionais; 110 cozinheiros estrangeiros, contra 34 nacionais».[68]

O Café Nicola, inaugurado no Rossio em 1929, «no mesmo local onde existira um famoso botequim pertencente a um estanqueiro italiano de nome Nicola, outrora frequentado pelo poeta Bocage e outros literatos»[69] é uma das empresas que responde ao inquérito dos «nacionais», e solícito, demonstra através do quadro de pessoal ter muito mais portugueses que estrangeiros ao seu serviço.[70]

O Hotel Central em Sintra, informa que não tem lá estrangeiros.[71]

Na cervejaria Trindade, o gerente, associado dos «nacionais», «substituiu todo o pessoal, que era na sua totalidade constituído por estrangeiros, por pessoal português.»[72]

No Casino Estoril, quatro cozinheiros galegos, sócios da Associação foram despedidos, sob o pretexto de nas empresas concessionários do jogo só poder haver portugueses a trabalhar. Os «nacionais» aplaudiram, e apressaram-se a apontar o casino como um exemplo de patriotismo a seguir pelas outras empresas.

Não é fácil, nem em democracia, em épocas de crise, desemprego, fome, e salários miseráveis, aos naturais de um país, assumirem a defesa dos estrangeiros que lá trabalham. Muito mais difícil ainda é fazê-lo no quadro de uma ditadura fascista em que a xenofobia faz parte dos seus fundamentos ideológicos. Mas os activistas sindicais da Associação fizeram-no corajosamente, até ao fim.

A questão foi também objecto de viva troca de correspondência entre a Associação, e a sua congénere do Porto. Numa das cartas enviadas do Porto para Lisboa, acerca de uma posição tomada na capital em defesa dos galegos que procuravam trabalho sazonal em Portugal, pode ler-se:

 «Repelimos energicamente e com repugnância o vosso procedimento pois que é um facto haver espanhóis chegando ao nosso país como rebanhos de carneiros, afrontando com o seu escárnio o pessoal nacional que se encontra desempregado e a braços com a miséria, o que vós não deveis desconhecer».[73]

Na resposta da Associação aos camaradas do Porto, longamente fundamentada, afirma-se:

«Com os trabalhadores portugueses nas épocas de Verão acontece caso idêntico. E sabem que trabalhadores são? Os ceifeiros. É certo que não são da nossa indústria, mas nem por isso deixam de ser portugueses…ora é fácil compreender que não é muito recomendável defenderem-se os ceifeiros e outros trabalhadores que se empregam em Espanha, a chamar nomes feios aos espanhóis»[74]

Em Julho de 1933, os «nacionais» mudam-se para a Praça do Município nº 13, 3º,  por considerarem que a as instalações da sede na Rua da Oliveira se tinham tornado pequenas para a dimensão que o sindicato adquirira entretanto.

Os «nacionais» consideraram a aprovação da constituição fascista uma vitória, e proclamam: «agora seremos nós os encarregados de fazer a fiscalização do incumprimento das leis de trabalho porque somos nós quem fica dentro da lei.»

Quando são publicados nos jornais os projectos de lei que iriam regulamentar os sindicatos e tomam conhecimento de que só viria a ser reconhecido um sindicato em cada profissão, e que todos os sindicatos se designariam «nacionais», mesmo que o seu âmbito fosse apenas distrital, clamam: «até parece que fomos nós que ditámos o nome». Agora que «a doutrina que defendemos está dentro do Estado Novo devemos aceitar o fim da luta de classes, e substitui-la pela conciliação entre trabalho e capital.»

No entanto, ficam altamente perturbados quando se apercebem que não podem excluir expressamente os estrangeiros nos estatutos do sindicato face à lei corporativa em discussão. Numa assembleia realizada em 19 de Julho para discutir o assunto, a agitação é tal que não conseguem chegar a qualquer conclusão. Na assembleia seguinte, com a presença de 120 sócios, a proposta de estatutos apresentada pela Direcção foi recusada por 53 votos contra, e 39 a favor.[75] Manuel Ferreira, o autor de A Cozinha Ideal, situacionista convicto, acusa: «fizeram a morte do sindicato.»[76]

Mas, os estatutos vão para discussão em nova assembleia, onde Manuel Ferreira, muito activo, faz uma intervenção em que afirma «sentir grande mágoa por serem obrigados a admitir estrangeiros.»[77] E para que os estatutos fiquem conforme a lei, propõe que não se exclua a admissão de trabalhadores estrangeiros, mas que estes, «bem como os portugueses que actualmente se encontram na Travessa dos Inglesinhos»[78] fiquem sujeitos ao pagamento de uma jóia de valor elevado, se quiserem vir a ser admitidos como sócios. A proposta acaba por ser aprovada, e os «nacionais» preparam-se para ser o sindicato homologado pelo governo.

Por alvará de 15 de Dezembro de 1933, foram aprovados os estatutos do Sindicato Nacional dos Profissionais da Indústria Hoteleira do Distrito de Lisboa.[79] São um dos três primeiros sindicatos a ser considerados legais pelo regime fascista, juntamente com os bancários, e o pessoal da Carris.

O facto é assim assinalado pelos «nacionais»: estamos «no nosso lugar legítimo de únicos representantes dos empregados da indústria hoteleira. Vamos entrar na realidade da ordem, trabalho e progresso. Unamo-nos no Sindicato, para que os homens que dirigem a Nação olhem para nós com a simpatia de que somos dignos.»[80]

 

 

 

[61] O Dever, nº 10, de 15 de Agosto de 1933, fls. 4

 

[62] Acta, nº 1 da Assembleia-geral, de 10 de Abril de 1931

 

[63] Acta, nº 2 da AG, de 15 de Junho de 1931

 

[64] Acta nº 3 da AG, de 4 de Novembro de 1931

 

[65] Acta AG, nº 9, de 7 de Julho de 1933

 

[66] Idem

 

[67] Dec. Lei 21 699 de 30 de Setembro de 1932

 

[68] A Voz da Razão, nº 1, de 1 de Dezembro de 1932, fls. 4

 

[69] Saraiva, José Hermano, História de Portugal, QUIDNOVI, Matosinhos, 2004. p. 20

 

[70] A Voz da Razão, nº 12, de Dezembro de 1933, fls. 2

 

[71] Ibidem.

 

[72] A Voz da Razão, nº 1 de 1 de Dezembro de 1932, fls. 1

 

[73] O Dever, de 15 de Julho de 1933, fls. 3

 

[74] Ibidem

 

[75] Acta, AG, 12, de 26 de Outubro, de 1933

 

[76] Idem

 

[77] Acta, AG, nº 13, de 30 de Novembro de 1933

 

[78] Idem

 

[79] Boletim do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, de 15 de Dezembro de 1933

 

[80] A Voz da Razão, de Dezembro de 1933 fls. 3

 

 

A PROIBIÇÃO DA GORGETA, O FIM DA CONDIÇÃO LEGAL DE

DOMÉSTICOS

Protegido como nunca pela Ditadura, o patronato, sequioso do lucro que lhe advinha quase exclusivamente de uma politica de salários baixos, levou a degradação das condições de vida e de trabalho ás ultimas consequências.

 No princípio da década de trinta, o desemprego e a fome grassavam no país, a lei do horário de trabalho e do descanso semanal eram letra morta, e muitos trabalhadores que já tinham conquistado as oito horas voltaram a ver a sua jornada de trabalho aumentada. Os salários foram reduzidos em termos reais e em termos nominais, situando-se muito abaixo dos mínimos de subsistência.

O prestigiado cozinheiro e activista Aleu Rocha, que desde muito jovem se destacava em defesa destes profissionais, menos de um ano depois da implantação da Ditadura, em Abril de 1927, revoltava-se contra o facto de os patrões terem ido junto do Ministro do Interior solicitar-lhe que o dia de descanso semanal fosse expressamente retirado à classe, dado, segundo eles, serem considerados trabalhadores domésticos. E, concluía, revoltado. Domésticos! Escravos… Não!

Seis anos mais tarde, em 1933, em exposição da Associação ao Ministro das Finanças, a indignação de Aleu Rocha, que continuava activo, expressava-se assim:

«…dispostos como estes empregados estão a adquirir doenças graves pelos gazes tóxicos e carbónicos que respiram, fácil é, reconhecer a gravidade e a violência dos serviços de cozinha, ainda agravados com as prolongadas horas de trabalho diário, pois os cozinheiros e restante pessoal de cozinha chegam a trabalhar 14, 16 e 18 horas, nunca ou quase nunca trabalhando menos de 14 horas diárias.

…Solicitamos portanto a V. Ex.ª que a classe deixe de ser considerada doméstica, e passe a usufruir dos benefícios da legislação sobre o horário de trabalho, visto nada haver que justifique tal classificação, porquanto os operários de cozinha que exercem funções de serviço nos hotéis, restaurantes e demais estabelecimentos, desempenham um trabalho industrial, pois que transformam e manipulam artigos para serem vendidos ao público.»[81]

Também a situação dos empregados de mesa voltou a regredir. O conhecido costume patronal de ficar com parte das gratificações tornou a alastrar. O Chave de Ouro, que fora um dos estabelecimentos que abolira o nefando costume, voltou a praticá-lo, cobrando agora 4 escudos diários a cada empregado.

No Café Avenida e no Restaurante Tábuas, o Costa do Marisco, antigo empregado de mesa, esqueceu-se que enquanto foi empregado sempre usufruiu do comer gratuitamente, e transformou-se num abutre que agora obriga cada trabalhador a pagar-lhe 10 escudos por dia, a troco de umas mais que frugais refeições, feitas com as aparas da carne e com os restos da comida dos clientes.

Em grande parte dos casos, aqueles que passam de explorados a exploradores transfiguram-se em patrões da pior extirpe. No Bristol Club, na Rua Jardim do Regedor, estabeleceram-se mais duas «sanguessugas» deste quilate. Os birbantes, um, antigo cozinheiro, outro, antigo empregado de mesa, obrigam o pessoal a pagar 30 escudos por mês para as limpezas, assenhoreiam-se das gorjetas e dividem-nas a seu belo talante, incluindo-se a eles próprios entre os que recebem a maior fatia, tendo ainda a distinta lata de se continuarem a fazer passar por camaradas de trabalho dos desgraçados que caiem sob a sua alçada.

Maus-tratos e vexames de todo o tipo, multas instituídas pela entidade patronal, e mesmo a agressão física aos trabalhadores, são frequentes. Um conhecido marialva, cavaleiro tauromáquico, proprietário de um hotel em Viseu, era temido pelos seus empregados porque tinha o costume de se passear pelo estabelecimento, de «cavalo-marinho» em punho, chicoteando a torto e a direito os trabalhadores que encontrava pelo caminho.

Um alemão proprietário da Pensão Atlântica do Estoril, que cobra 10% de taxa de serviço aos clientes mas não a distribui aos empregados, embolsando-a para si, desata à bofetada e ao pontapé aos trabalhadores ao mínimo gesto de descontentamento que estes manifestem.

No Palácio Hotel do Estoril, classificado como grande hotel de luxo, «um empregado que é encontrado a comer um papo-seco, é multado em 10 escudos, mais que o salário de um dia, 5 escudos do pão e 5 da manteiga. Empregado que assome à janela, é multado em cinco escudos. Empregado que leve o pequeno-almoço a um cliente, no quarto, que por qualquer motivo o devolve à cozinha, é obrigado a pagar 20 escudos.»[82] Como se fosse o criado o responsável pela reclamação ou pelo mau humor do cliente.

Em vários cafés de Lisboa e do Porto, os empregados de mesa eram obrigados a usar calças e casacos sem algibeiras, para, segundo os patrões que a isso os obrigavam, não poderem levar as mãos aos bolsos com o produto dos roubos que faziam durante o serviço.

A redução das gratificações inerente ao comportamento dos clientes em tempo de crise, e a consequente diminuição das remunerações do trabalho, em simultâneo com o processo de reorganização e reactivação sindical iniciado em 1929, e concluído em 1932, levaram a classe, na hotelaria, a retomar novamente com força, as campanhas pela abolição da gorjeta e pela criação de uma taxa de serviço de 10% nos hotéis e restaurantes, e de 20% nos cafés.

Foram repetidos e amplificados os argumentos históricos já conhecidos, de forma mais elaborada, tais como: a esmola e a gorjeta são irmãs gémeas; a remuneração deve ser feita pelo patrão e não pode estar condicionada à boa vontade da bolsa do cliente; a maioria dos estabelecimentos que durante a greve de 1924 aumentaram os preços em 20% com o argumento de que se destinavam à taxa de serviço acabaram por não a estabelecer, etc. etc.

A acrescer a estas razões havia ainda hotéis, restaurantes e cafés que já cobravam a percentagem aos clientes, mas depois não a distribuíam aos empregados, ou distribuíam-na apenas parcialmente, passando os clientes nestes casos, compreensivelmente, a recusarem-se a dar gratificações dado que elas já estavam incluídas na conta.

Entretanto, chegam notícias de outros países da Europa em que a gorjeta fora proibida e substituída pela taxa de serviço. Um acordo colectivo entre os proprietários de cafés, bares e cervejarias de Madrid e os seus empregados, a estabelecer uma percentagem de serviço de 20% foi festejado em Lisboa como uma vitória. «Em Espanha dignificam-se os que trabalham. Ou a República ali, nos termos da constituição, não se intitulasse de república dos trabalhadores!» Escrevem.

No Estoril, zona onde o sistema de percentagem está mais generalizado, esta passa a estender-se a outras regiões. No Suiss Atlantic Hotel, em Lisboa, o patrão resolveu autorizar a percentagem em substituição da gorjeta, após uma intervenção do sindicato num conflito que ali ocorrera.

A conflitualidade e a anarquia provocadas pelo vazio legal existente, o descontentamento, os protestos e a acção dos trabalhadores, o facto consumado de, quer como resultado da luta e da negociação colectiva quer por arrastamento e exemplo de outros casos, já estar a ser praticada a taxa de serviço em muitos estabelecimentos, levou finalmente o Governo a legislar sobre o assunto. Mas, fê-lo de tal maneira que os trabalhadores consideraram que a situação ficou ainda pior.

O Decreto nº 21 861, de 11 de Novembro de 1932, não instituiu a percentagem como forma obrigatória de remuneração, como reivindicavam os trabalhadores, vindo apenas proibir as gratificações «nos estabelecimentos que adoptem o sistema de cobrar gratificações destinadas ao pessoal.» Reconhecia portanto a existência desta prática, mas deixava a sua adopção ou não ao critério dos patrões. Ao mesmo tempo, a lei, obrigava «a afixar no vestíbulo ou entrada, sala de jantar, botequins e quartos, letreiros em caracteres bem legíveis e em português, francês e inglês, chamando a atenção dos clientes para a abolição das propinas ao pessoal, que ficará sujeito a sanções severas se as aceitar.»

A Associação reagiu de imediato pedindo a introdução de alterações ao decreto, no sentido de nele ficar expressa qual a percentagem a pagar pelo cliente, de torná-la extensiva a todas as empresas e não apenas àquelas onde já existia, e de consagrar mecanismos de controlo que garantissem que a taxa cobrada se destinava exclusivamente ao pessoal, e evitassem que os patrões lhe dessem destino diferente.

A estas mais que justas razões o Governo fez ouvidos de mercador. O resultado foi que no imediato, a divulgação pública e a afixação obrigatória dos avisos sobre a proibirão das gratificações, levou os clientes, mesmo nos estabelecimentos onde não era praticada a taxa de serviço, que eram a maioria, a deixarem de retribuir os serviços com a gorjeta, reduzindo-se assim nestes casos drasticamente, a já de si precária remuneração dos empregados de mesa.

Contudo, a partir da insuficiente e tortuosa base legal criada foi iniciado um longo processo de luta dos trabalhadores com vista a generalizar a taxa de serviço, e a resolver os problemas mais difíceis da sua distribuição: garantir que os patrões não ficassem com ela, fazendo o seu controlo, e definir se a taxa deveria ser distribuída em partes iguais por todos os trabalhadores, ou se deveriam estabelecer critérios diferenciados, em conformidade com as diferentes categorias profissionais, atribuindo uma parte maior aos mais qualificados e ás chefias, e assim sucessivamente.

A Assembleia-geral da Associação, de 24 de Julho de 1933, que aprova o balancete do 1º semestre do ano, que reporta uma receita de 26 694 escudos e setenta centavos e uma despesa de 24 116$15, expulsou um sócio por má conduta a fim de defender o bom-nome da classe, aprovou a filiação definitiva na Federação das Associações Operárias de Lisboa – FAO, e elegeu também uma comissão com a incumbência de elaborar um trabalho sobre a percentagem.[83]

No plano das reivindicações, o «sindicato nacional» assumia as mesmas que a Associação, e acrescentava-lhes o seu exclusivo distintivo. A exigência da expulsão dos estrangeiros.

 São os «nacionais» quem toma a dianteira no tratamento da questão escaldante da repartição do «caixa» ou da taxa de serviço, defendendo partes diferentes para categorias profissionais e responsabilidades diferentes, embora procurando atenuar algumas práticas desproporcionadas existentes. Tomam como exemplo o «Estoril Palácio Hotel» onde se praticava a seguinte tabela de distribuição:

1º Chefe de Mesa …………. 3,2 Partes

2º Chefe de Mesa……………2 “

3º Chefe de Mesa……………2 “

Chefe de Turno………………1 “

Ajudante de Turno……….0, 85 “

E promovem um abaixo-assinado nesta unidade de luxo, subscrito por toda a brigada do restaurante, abaixo-assinado que entregam à administração, propondo a redução das diferenças existentes entre as categorias. Fruto desta acção, embora ainda longe da proposta do sindicato, a distribuição melhorou, e os ajudantes viram a diferença que os separava dos Chefes de Turno descer de 40% para 20%.

«A Administração não quis tocar na parte dos chefes-de-mesa, dizendo que esta fora fixada por contrato.»[84]

Meses depois, dado o descontentamento que persistia, voltam a insistir junto do «Estoril Palácio», desta vez solicitando à Administração que aplicasse a tabela vigente no «Hotel Avenida Palace», em Lisboa, onde não havia reclamações dos trabalhadores, e a distribuição da percentagem se fazia da seguinte forma:

1º Chefe……………………20 Partes

2º Chefe…………………….15 “

Chefe de Turno…………….10 “

Ajudantes…………………… 8 “

Empregados de Andares……10 “

Propõem ainda que sejam atribuídas 4,5 partes, aos aprendizes, e concluem:

«Esperamos que V.Exas. farão por cumprir esta resolução que é de toda a classe, evitando assim as reclamações constantes.

Não queremos por enquanto agitar este assunto por entendermos que V. Exas. como bons portugueses defensores de todo o pessoal e em especial dos portugueses, como têm sido até agora, nos dispensarão de o fazer.»[85]

Na Assembleia-geral de 26 de Outubro os «nacionais» elegem uma comissão presidida por Manuel Mendes Leite Jr., que elabora um projecto de definição do perfil das categorias profissionais existentes em todas as secções de hotéis, cafés e restaurantes, que propõe tabelas de distribuição diferenciada da taxade serviço em função da classificação dos estabelecimentos, e das categorias profissionais existentes.

Mendes Leite Jr., empregado de mesa, sócio fundador nº 20 dos «nacionais», jovem activo e ambicioso, destacava-se entre os adeptos do fascismo na classe, pela facilidade com que escrevia.

Era ele quem redigia moções e requerimentos nas assembleias-gerais, que fazia as actas, a contabilidade e a correspondência do sindicato, elaborava a definição das categorias profissionais, redigia relatórios e estudos de comissões, sobrando-lhe ainda tempo para publicar artigos sobre formação profissional e organização hoteleira em quase todos os números de A Voz da Razão.

Assumia-se como defensor dos trabalhadores, mas, sem luta de classes, dizia. Dentro do regime corporativo. E, ao mesmo tempo que tecia votos de fidelidade ao fascismo, ia apresentando reivindicações, alertando as autoridades para a eventualidade de os trabalhadores poderem vir a ser desencaminhados caso não fossem feitas algumas concessões.

Alem da distribuição pelos trabalhadores, o projecto redigido por Leite Jr. propõe que ao nível das secções existentes num hotel, o «bolo» da taxa de serviço seja repartido em 50% para os trabalhadores da secção de Mesas, 30% para a Porta, e 20 para os Quartos.[86]

Esta seria a matriz que ao longo dos lentos quarenta anos seguintes viria a ser consagrada, com alguns aperfeiçoamentos, nos contractos colectivos, e depois num Regulamento de Distribuição da Taxa de Serviço, negociados entre os grémios patronais e os «sindicatos nacionais».

Na Assembleia-geral convocada ostensivamente para o dia marcado para a Greve Geral, em 18 de Fevereiro de 1934, os «nacionais» com o propósito de motivar a participação dos sócios, alem do acto eleitoral, e do relatório e contas do ano anterior, propuseram uma nutrida ordem de trabalhos onde constavam para discussão, uma tabela de preços para os «serviços extra» em casamentos, baptizados e outros eventos, e o projecto de distribuição da taxa de serviço elaborado pela comissão que tinha essa incumbência.

Apesar do cuidado que tiveram propondo que onde já existisse o sistema de percentagem esta fosse distribuída «em partes iguais sem distinção de categorias», e tivessem defendido a distribuição diferenciada só para o futuro, os dirigentes dos «nacionais» que acabavam de ser eleitos averbaram uma rotunda derrota. «O estudo foi rejeitado por unanimidade.»[87]

A primeira Direcção eleita no quadro legal fascista não se subordinou à decisão da assembleia-geral sobre a distribuição da percentagem, e duas posições sobre o assunto continuaram em confronto no sindicato. Uma, sob a batuta de Leite Jr., a defender que a distribuição igualitária era injusta, porque a categorias e responsabilidades diferentes deveriam corresponder fatias diferentes do «bolo».

 Outra, a que tinha saída vencedora na assembleia, a dizer que sim senhor, que fossem pagas remunerações maiores aos chefes e a categorias de 1ª, mas que a diferença para mais fosse suportada pela entidade patronal, e não saísse da percentagem, que devia continuar conforme a prática corrente na maioria das casas a ser distribuída por todos em partes iguais, mantendo-se assim o «comunismo» característico do «caixa».

Mas Leite Jr., de cariz autoritário, pessoa cheia de certezas e razões relativamente ás quais só com dificuldade admitia contestação, não era homem para desistir perante uma contrariedade, e tinha um objectivo de poder. Passar de 1º Secretário a Presidente da Direcção, nas eleições seguintes.

Sobre o 18 de Janeiro e aquilo que considerava as virtudes da fascismo, escreveu:

«Pelos manifestos que li, incitando à Greve Geral Revolucionária, os operários, que sempre andaram enganados, e que caíram em mais um logro, quando os videirinhos[88] nos diziam para não aderirmos ao Estado Novo, e repudiarmos o Dec. Lei 23 050, que regulamenta a transformação porque passamos e vai permitir reivindicações que nunca os trabalhadores, com todas as lutas ideológicas conseguiram, cheguei ás seguintes conclusões:

Até à instauração do regime corporativo, que papel tiveram as associações de classe? Nenhum! Acontecia-lhes como aos peixes no mar, em que os grandes se alimentam com os pequenos que comem.

(…) Está na memória de todos o que foi a Associação que representava os empregados da indústria hoteleira, em Lisboa.

É sabido que a acção tumultuosa das associações operárias obedecia quase sempre a comandos ou sugestões mais ou menos obscuras de agitadores profissionais interessados em implantar a desordem e o descontentamento nos trabalhadores.

Vejamos porém, o que oferece aos operários, que se prezam de o ser, e aos organismos sindicais o novo regime corporativo.

Dá, a superior elevação desses organismos a categoria de associações de interesse público, que eles nunca tiveram.

 Garante-lhes igualmente a função de colaboradores na vida politico-constitucional da Nação, mediante representações idóneas e directas nos corpos consultivos e nas assembleias legislativas do Estado.

Dá, aos novos sindicatos nacionais, as garantias de contractos colectivos de trabalho, definidos no estatuto Nacional do Trabalho como instituto jurídico.

 Alguma vez isto tinha sido feito em leis portuguesas, até hoje? Não.»[89]

Mendes Leite Jr. declarava-se convicto de que os sacrifícios de hoje seriam compensados no futuro, e que, os conteúdos que a lei estipulava que deveriam constar obrigatoriamente dos contractos colectivos de trabalho: «horário e disciplina de trabalho; salários ou ordenados; faltas; descanso semanal; férias; condições de suspensão ou perda do emprego; período de garantia deste no caso de doença; período de aprendizagem ou de estágio e quotas das entidades patronais e dos empregados para as organizações sindicais e de previdência» em breveseriam uma realidade.

O «benjamim» do fascismo no Sindicato Nacional dos Profissionais da Industria Hoteleira, aproveita a sessão comemorativa do 3º aniversário do sindicato, em que, depois da intervenção do representante do Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social foi ele a fazer o discurso de fundo, para tentar assumir-se como o novo líder dos «nacionais».

O discurso que profere e a encenação que organiza e anima, que inclui um menino e uma menina a entregar um ramo de flores ao representante do Governo que preside à sessão, pedindo a protecção de Salazar, é o protótipo do que viria a repetir nas mais variadas situações, nos 40 anos que se seguiram.

Nesse discurso, apresenta assim as reivindicações:

«A este sindicato, que foi o primeiro ou o segundo a integrar-se nas novas directrizes, de certeza o primeiro a ventilar o assunto em assembleia-geral, assiste-lhe o direito de pedir aos bons homens que nos governam que satisfaçam as suas legítimas aspirações: a abolição da gorjeta; a regulamentação do trabalho dos estrangeiros; a abolição da classificação oficial de domésticos; a criação de um habitat digno de pessoas civilizadas.»

E conclui: «Tenhamos calma, saibamos esperar com fé, trabalhemos por unir no sindicato tanto nacionais como estrangeiros, tendo como legenda a ideia luminosa que guia Portugal, TUDO PELA NAÇÃO NADA CONTRA A NAÇÃO, e algumas coisas notáveis havemos de fazer nos anais de um sindicalismo ordeiro, mas sempre reivindicador.»[90]

O activismo frenético de Manuel Mendes Leite Jr. no seu primeiro assalto ao cargo de Presidente do sindicato, não resultou. A defesa das propostas controversas sobre a distribuição da taxa de serviço e sobre a admissão dos estrangeiros no «sindicato nacional», os compromissos em que se envolveu com o patronato sobre o horário de trabalho, em que admitia horários mais longos do que os fixados na lei geral, e o claro e inequívoco engajamento com o fascismo, acrescidos ao atrevimento de, tão jovem, se querer assumir como «chefe», aumentaram o número dos que se lhe opunham.

Uniu contra ele e os que o apoiavam, os trabalhadores que, embora tivessem embarcado na onda xenófoba, tinham uma cultura associativa forte e combativa em defesa dos seus direitos, os ultras, afectos aos camisas azuis de Rolão Preto, que à data ainda não tinha sido ostracisado por Salazar, e profissionais altamente qualificados e prestigiados, que não viam com bons olhos as ambições desmedidas daquele jovem e atrevido salazarista.

A própria Direcção que integrava começou a desagregar-se devido ás contradições geradas por posições diferentes dos seus elementos, sobre questões cruciais, como a distribuição da percentagem e a duração do horário de trabalho.

 O desencanto daqueles que tinham aderido de boa fé à doutrina do Estado Novo, de negação da luta de classes, começava mesmo a manifestar-se expressamente. «Se nós fomos sinceros nos nossos propósitos, outro tanto não o tem sido a classe com quem nós colaboramos. A classe patronal, salvo honrosas excepções que as há, tem procurado torpedear malevolamente a obra do sindicato.»[91]  Lamentam-se.

 E prosseguem com um role de exemplos em que as empresas aproveitam os hiatos legais para estabelecerem unilateralmente, e em seu benefício, formas diversas de arrecadação da percentagem. «Há hotéis em que o Chefe-de-serviço recebe 11 vezes mais da percentagem do que o outro empregado que se lhe segue, também casado e com filhos.» Na Sociedade Estoril Plage, proprietária dos principais hotéis do Estoril e do Maxim’s de Lisboa, a Administração fica com 30% da taxa de serviço com a justificação de ser para suportar prejuízos[92]. Nos hotéis Tivoli e Aviz, parte da percentagem é desviada para pagar ordenados a empregados que sempre tiveram ordenados fixos suportados pela entidade patronal. E assim por diante.

A agravar o ambiente de descontentamento existente na classe aparece o Governo a publicar nos jornais um projecto de lei do horário de trabalho que, quanto à duração do trabalho diário não era mais do que a reafirmação da lei de 1919, e que mantinha os trabalhadores de hotelaria classificados como «domésticos.»

 Foi a gota de água que fez transbordar o copo. Parte da Direcção demitiu-se, e foram necessárias duas assembleias tumultuosas para substituir os demissionários.

A classe tinha ficado em polvorosa com o projecto de horário. De tal modo que os protestos foram suficientes para provocar um recuo nas intenções iniciais do Governo e, no Dec. Lei nº 24 402 de 24 de Agosto, acabou por ser incluída uma disposição que, embora remetendo a questão da duração e organização do horário para um regulamento especial a elaborar posteriormente, eliminava expressamente a classificação dos trabalhadores de hotelaria como empregados domésticos.

O facto foi assinalado como uma grande vitória e vivas a Salazar e ao Estado Novo pelo grupo de «nacionais» que girava em torno de Leite Jr.

Na verdade, tratava-se da satisfação de uma velha reivindicação da classe que abria caminho para a aplicação do horário fixado na lei geral à hotelaria. Mas esse caminho seria ainda muito longo. Nos hotéis, restaurantes e cafés, o horário continuou a ser de 14, 15 e 16 horas diárias como até aqui.

O patronato escudava-se agora no facto de ainda não ter constituído os grémios a que estava obrigado por lei, mas que impunemente demorava em cumprir, para se eximir à participação na elaboração do regulamento previsto na nova lei do horário de trabalho.

Mendes Leite Jr. valorizou ao máximo a legalização da bolsa de emprego criada no sindicato, a que os patrões ficavam obrigados a recorrer quando necessitassem de admitir novos trabalhadores.

 Mas, a questão da não aplicação da lei do horário de trabalho à industria hoteleira, facto pelo qual a Direcção de Leite Jr. também era responsabilizada, e até de ser conivente, chegando mesmo a ser acusada de ter sido subornada com 200 contos pelo patronato para o efeito[93], sobrepunha-se a todas as outras.

Por isso, nas eleições que se vieram a realizar em 21 de Fevereiro de 1935, a lista que Mendes Leite Jr. integra perde por dez votos, em favor de uma lista que defendia posições mais combativas relativamente ás reivindicações da classe.[94]

Uma das primeiras acções da nova Direcção eleita foi uma deslocação colectiva ao Instituto Nacional do Trabalho e Previdência – INTP, a exigir uma solução para a questão do horário de trabalho. O Governo, na resposta à valentia dos manifestantes, de forma mais suave que noutros casos, com a mais que provável mediação de Leite Jr., oficiou o Presidente da Mesa da Assembleia-geral da seguinte forma: «o Subsecretário de Estado das Corporações retira a confiança à Direcção pelo facto de alguns dos seus elementos terem sido menos correctos com um dos seus representantes do INTP, e como desejava continuar a tratar das questões de trabalho com a cooperação do nosso sindicato pedia previdências para a situação.»[95]

Mendes Leite Jr. apresenta na Assembleia-geral que se realizou para tomar as previdências pedidas pelo Governo, uma moção em que propõe que esta «lamente o acto impensado e reitera na pessoa do Dr. Pedro Teotónio Pereira a confiança de que os problemas da classe, em especial o horário de trabalho sejam resolvidos em curto espaço de tempo para bem da classe, prestígio do sindicato e honra do Estado Corporativo.»[96]  Propõe ainda que sejam demitidos e substituídos, não toda a Direcção, mas apenas Paulo Vaz de Carvalho e Domingos Morais, os dirigentes que tinham estado à frente dos protestos dos trabalhadores junto do INTP.

Os dirigentes sindicais visados, de forma sóbria e cheia de dignidade, em sua defesa, disseram na assembleia que, apenas tinham querido defender a classe.

A Direcção, solidária com os camaradas que o Governo queria expulsar, não aceitou a proposta de Leite Jr., pediu a demissão colectiva, e entregou as chaves do sindicato ao Presidente da MAG, que promoveu uma nova eleição, de onde emergiu como Presidente, Manuel Mendes Leite Jr., claro.

Mas os protestos e a contestação dos trabalhadores em defesa dos seus direitos não abrandaram, e as assembleias-gerais continuaram a ser tempestuosas. Na vez seguinte em que o Governo teve que dar a mão a Leite Jr. para o manter à frente do sindicato foi menos ardiloso e mais  conforme com a sua natureza anti-democrática  do que na primeira vez.

 Nomeou-o Presidente de uma Comissão Administrativa, que em vez de eleita foi imposta à classe coercivamente, por despacho, condição em que se manteve durante mais de dois anos, após o que veio a deixar novamente o cargo para que fora nomeado, debaixo de grande contestação dos trabalhadores.

Só depois de as gerações de activistas oriundas da escola de sindicalismo da Primeira Republica se terem desvanecido muito, e passadas muitas peripécias com eleições e destituições no sindicato, é que este homem do corporativismo fascista voltou novamente ao sindicato, como Presidente da Direcção, cargo em que se manteria até ser apeado numa fabulosa assembleia-geral com mais de mil trabalhadores, que começou nas salas da sede do sindicato, e que por falta de espaço para tanta gente, terminou nas escadinhas e becos circundantes ao Pátio do Salema, em Lisboa, no dia 29 de Abril de 1974.

Nesse dia, após a eleição de uma Comissão Directiva Provisória para dirigir o sindicato até à realização de eleições livres e democráticas, dezenas de activistas inundaram as instalações do sindicato, a gritar, Liberdade! Liberdade! Fascistas para a rua!

 

[81] O dever, nº 3 de 10 de Janeiro de 1933, fls. 4

[82] O dever, nº 1 de 10 de Novembro de 1932, fls. 3

[83] O dever, nº 10 de 15 de Agosto de 1933, fls. 4

[84] A Voz da Razão, nº 3 de 1 de Fevereiro de 1933, fls. 4

[85] A Voz da Razão, nº 10 de Outubro de 1933, fls.2

[86] A Voz da Razão, nº 11 de Novembro de 1933, fls.2

[87] Acta da AG, de 18 de Janeiro de 1934

[88] Leite Jr. utiliza aqui o apodo de videirinhos,  segundo David de Carvalho, dado pelos anarquistas aos comunistas e uma das causas de maior antagonismo e divisão entre estas duas tendências sindicais.

[89] A Voz da Razão, nº 14 de Fevereiro de 1934, fls. 2

[90] A Voz da Razão, nº 17 de Maio de 1934, fls.1 e 4

[91] A Voz da Razão, nº 19 de Julho de 1934 fls. 1

[92] A Voz da Razão, nº 23 de Janeiro de 1935 fls. 1

[93] Acta AG nº 20, de 9 de Fevereiro de 1935

[94] Acta da AG nº 21, de 21 de Fevereiro de 1935

[95] Acta da AG nº22, de 23 de Maio de 1935 e Oficio nº 28112 de 14 de Maio de 1935 da Repartição do Trabalho e corporações, dirigido ao Presidente da AG.

[96] Idem

 

Unir Forças e Reorganizar Para Resistir – A Inter-Sindical 

A ideia de unidade e de sindicato único é uma aspiração sempre latente desde as origens do sindicato. Corresponde à ideia de, todos juntos, independentemente da profissão, do partido ou da religião, somos mais fortes para enfrentar o patronato e conseguirmos os nossos objectivos. E, ciclicamente, surge na forma de proposta em assembleias-gerais. Mas, é a partir de 1919, com o aperfeiçoamento do conceito de «sindicatos únicos de indústria» e de federações nacionais correspondentes, no movimento sindical, que a ideia ganha força suficiente para se começar a materializar.

Na hotelaria, António Quintela Maia é um activo dinamizador da unidade orgânica, e faz propostas sucessivas para a concretizar. Já em 1919, escreve: «É uma questão de vida ou de morte que apareça um engenheiro dentro da classe, não importa que seja ou não diplomado, o que interessa é que seja capaz de montar a máquina de que necessitamos para a luta. As peças já se encontram construídas, o que estão é dispersas, e necessitam de ser agrupadas. São as associações dos criados, dos culinários, dos empregados dos hotéis, e a dos corretores. A máquina poderá denominar-se: Federação dos Empregados na Industria Hoteleira e Artes Similares. Debaixo da bandeira que este nome simboliza cabem todos: cabe o cozinheiro, o ajudante, o moço, o criado de mesa, o copeiro, o criado de quartos, porteiros e criados de casas particulares, corretores de hotéis e pasteleiros. Enfim, todos os que da industria vivem para não morrerem de fome.»[97]

Quintela Maia informa ainda que a soma dos sócios das quatro associações a federar vai ultrapassar os mil, de entre os cerca de oito mil que constituem a classe, em Lisboa. E, num raciocínio mais economicista do que politico, fundamenta: assim, poderemos estar todos na mesma casa, ter um empregado de escritório efectivo, competente e bem pago, um cobrador e dois contínuos e, feitas as contas, pagarmos menos estando juntos do que o que pagamos agora, estando separados.

Quintela tira uma última conclusão, e remata com um remoque: «para conseguirmos isto, há de facto direitos adquiridos, que convém que sejam respeitados, e há também alguns caturras das quatro associações, que não abdicam com facilidade do seu amor-próprio, mas face ao interesse geral, talvez venham a mudar de opinião, um dia.»

O projecto acaba por não vingar, nesta altura, mas não morre. Entre 1922 e 1924, a direcção anarquista insiste na ideia, e chega a sugerir uma proposta de âmbito ainda mais alargado, através da realização de um congresso dos operários da alimentação, afim de lançar as bases de uma Federação de Indústria, que organize os «manipuladores de pão, pescadores, manipuladores de massas, farinhas e bolachas, empregados de hotéis, restaurantes e cafés, trabalhadores em conservas, etc.»[98]

Também esta proposta não vinga e, é já em plena Ditadura, no quadro de um processo mais amplo de reorganização sindical, que o projecto volta a ganhar corpo, e com o Quintela Maia novamente empenhado na sua concretização, acaba por realizar-se em 1929, através da fusão da Associação de Classe dos Empregados dos Hotéis e Restaurantes e a Associação dos Criados de Mesa. Processo de que resulta a criação da Associação de Classe dos Empregados na Indústria Hoteleira e Profissões Anexas[99]. Em 1932, integram-se na associação resultante da fusão, as associações dos Culinários e a dos Corretores de Hotéis de Lisboa, integração a que se segue o ingresso colectivo dos intérpretes, que criam uma secção profissional dentro do sindicato.[100]

Estava assim constituído o sindicato único da hotelaria em Lisboa, com cerca de 2 mil sócios.[101] Único, porque o seu âmbito abrangia todos os trabalhadores da indústria hoteleira. Mas na verdade, já não era único, porque entretanto o grupo divisionista tinha constituído em 1931, o sindicato que só admitia «nacionais», na Rua da Oliveira ao Carmo.

No dia 30 de Abril de 1933, o sindicato que resultou do processo de reorganização festejou o 29º aniversário. Data que resulta do facto de ter sido considerada a fundação da Associação dos Criados de Mesa, em Abril de 1904, a mais antiga das que se fundiram, como data referência para o efeito.

Na sessão comemorativa, onde por determinação das autoridades só puderam usar da palavra os filiados na Associação, fizeram-se representar 20 associações de classe, de que se destacam, a dos tipógrafos, os correios e telégrafos, a Carris, os alfaiates, os ferroviários, os tabacos, os músicos, os bancários, os carregadores das margens do Tejo, os fragateiros, os vendedores de leite, os fósforos de Lisboa, os confeiteiros, e a do Arsenal da Marinha[102]. A sessão solene terminou com um minuto de silêncio em homenagem aos sete arsenalistas do exército que pereceram incinerados na horrorosa catástrofe de Barcarena.

A primeira direcção da Associação depois das fusões, que tem Pinho Ribeiro como Presidente e Quintela Maia como tesoureiro, assume como medidas reivindicativas imediatas, forcejar pela a extinção da gorjeta, a revogação do decreto que descrimina os galegos no trabalho, e a negociação de regulamentos colectivos que definam os deveres e direitos de cada profissão no exercício das suas funções.[103]

Na composição da massa associativa e dos corpos gerentes havia activistas filiados ou simpatizantes de todos os credos políticos. Mas a corrente mais influente era a dos socialistas, seguida dos anarquistas, tendo os dois grupos como referências de linha sindical a seguir, as centrais sindicais espanholas UGT e CNT, respectivamente. Havia também alguns simpatizantes comunistas, como indiciam algumas posições da associação, citações e artigos publicados no jornal.

Uma das formas que neste período os sindicalistas encontraram de criticar o fascismo, no plano interno, e de lhe contraporem o socialismo era através da publicação de citações antagónicas, no jornal. Seleccionavam e publicavam algumas das afirmações e teses mais características dos amigos de Salazar, Hitler e Mussolini, e na mesma edição, inseriam citações apropriadas de Marx, Engels e outros, em contraposição. Em 1933, os comunistas Vladimir Ilitch[104] e Losowski passaram a ser alguns dos citados, em O Dever.

Mas as tendências minoritárias aceitavam sem grande contestação que a Associação girasse em torno da mais pequena das três centrais sindicais portuguesas. A Federação das Associações Operárias de Lisboa – FAO, de influencia socialista. A filiação definitiva da Associação na FAO foi aprovada apenas com um voto contra na assembleia-geral de 24 de Julho de 1933.

Nesta mesma assembleia foi eleita uma comissão para elaborar um estudo sobre a adopção da taxa de serviço nos hotéis.

Nos primeiros anos, a resistência politica à Ditadura é principalmente levada a cabo pelos republicanos que, com os partidos desacreditados e desmoronados, se constituem em grupos de civis e militares dedicados a organizar tentativas de «reviralho», nas quais se envolvem habitualmente os anarco-sindicalistas e boa parte dos sindicalistas comunistas que, por não terem uma direcção politica consistente, acabam por ser apenas tropa de choque no plano social e seguir a reboque do «reviralhismo» dos republicanos.

Só o Partido Comunista sob a direcção de Bento Gonçalves se apercebe que a luta contra a Ditadura exige novos métodos e novas formas de organização, para o que se está a preparar, através da reorganização, que implica a adopção da doutrina de Lenine sobre o partido de novo tipo, com novas formas orgânicas e de acção que lhe vão permitir resistir e actuar mesmo nas difíceis condições da clandestinidade.

  No espaço de três anos após a realização da conferência que despoletou o processo de reorganização, em Abril de 1929, onde Bento Gonçalves foi eleito Secretário-geral, o Partido ganhou implantação e prestigio junto dos trabalhadores, e os sindicatos vermelhos, de influência comunista, ultrapassaram a representatividade dos anarquistas da CGT.[105]

«Quase todos nós provínhamos do movimento sindical, onde uns éramos mais velhos, outros mais novos. E isto explica a atenção politica que os sindicatos nos mereceram»[106], dizo Secretário-geral do PCP.

A contestação a uma das traves mestras da ideologia fascista, a negação da luta de classes, tendo por base a ideia de que os interesses do trabalho e do capital são os mesmos, corporizada na constituição de organismos corporativos de concertação social compostos por patrões, representantes do Governo e trabalhadores, foi a mola ideológica que impulsionou a criação da Comissão Inter-Sindical, no início do mês de Março, em 1930.

Na discussão desencadeada no movimento sindical sobre a entrada ou não para as comissões paritárias e tripartidas propostas pelo Governo fascista, defrontavam-se duas tácticas: a dos socialistas, que conduzia à participação e ao colaboracionismo, e a dos comunistas, que preconizavam a não participação e a independência dos sindicatos face ao patronado e ao Estado burguês.[107]  Por sua vez, os anarquistas mantinham-se fiéis ao princípio de nada quererem saber do que quer que tivesse a ver com o Estado, apenas queriam vê-lo destruído. O que objectivamente os colocava numa posição convergente com os comunistas nesta questão.

Quando o Sindicato dos Empregados do Comércio e Indústria e a Associação dos Caixeiros foram convidados pelo Governo a integrar uma comissão tripartida para o estudo da lei do horário de trabalho, e queriam fazê-lo, embora com o apoio dos restantes sindicatos de Lisboa, convocaram uma reunião de sindicatos que veio a realizar-se a 25 de Fevereiro de 1930, na sede do Sindicato do Pessoal Ferroviário da CP.

Nesta reunião reinou a maior das confusões. A CGT não tomou posição oficial. Os sindicatos da construção civil e dos arsenalistas do exército não estavam contra. Só o sindicato dos arsenalistas da Marinha, pela voz de Bento Gonçalves rejeitou claramente o convite do Governo, e apresentou uma moção para «a constituição duma Comissão dos Sindicatos de Lisboa, de carácter permanente, tendo por tarefa tratar da situação dos trabalhadores, particularmente das questões do horário de trabalho e do desemprego»[108]. Uma Comissão exclusivamente constituída por sindicatos com objectivos mais amplos do que a questão do horário.

 Dos sindicatos presentes, 14 apoiaram a moção dos arsenalistas da Marinha, e 7 votaram contra.

A Associação de Classe dos Empregados da Industria Hoteleira e profissões Anexas, presente nesta reunião, alinhou com o grupo dos que queriam integrar a comissão paritária, oficial.

Já a Associação dos Profissionais Culinários, cujo Presidente é Aleu Rocha, que à data ainda não se tinha fundido com a outra associação da hotelaria inclinou-se para o grupo dos não participacionistas.

A Comissão Inter-Sindical – CIS, iria assim ser uma realidade, formalizada dez dias depois numa segunda reunião, realizada a 6 de Março no Sindicato do Arsenal da Marinha, no dia da jornada internacional contra o «chômage»[109].

A esta reunião aparecem novas associações e faltam algumas das que estiveram na anterior, entre as quais, a da Industria Hoteleira. Mas a Associação de Classe dos Profissionais Culinários está presente, e é eleita para a Comissão Inter-Sindical, juntamente com os Manufactores de Calçado, Compositores Tipográficos, Maquinistas Fluviais, Construção Civil, Arsenalistas da Marinha e barbeiros, sob proposta apresentada pelo delegado dos Alfaiates[110].

O interesses comuns dos trabalhadores e a posição convergente quanto à não participação na Comissão proposta pelo Governo levaram comunistas e anarquistas a unirem-se nesta primeira Comissão Inter – Sindical eleita, ficando de fora apenas os que defendiam a participação na comissão tripartida.

Alem da eleição, os sindicalistas presentes discutiram a questão do o horário de trabalho, em particular o não cumprimento da lei por parte do patronato. Era uma das questões mais candentes para trabalhadores e para movimento sindical e, a par da luta contra o desemprego foi um dos eixos principais unificadores em torno dos quais nasceu e se desenvolveu a CIS.

Em Abril, num dos seus primeiros documentos, a CIS exige que o horário de trabalho de oito horas seja também extensivo aos camponeses e aos trabalhadores dos Hotéis, Cafés e restaurantes.[111]

É todo um processo de reorganização sindical que é levado a cabo por todas as tendências sindicais existentes nesta altura, onde se inserem também as fusões que ocorrem na hotelaria.

Os socialistas, na sua tentativa de aumentarem a influência no movimento sindical, privilegiam a criação de associações de classe em zonas brancas e a reactivação de outras que estavam inactivas. Tudo indica que no decorrer do processo de reestruturação iniciado em 1929 na Associação dos Hotéis Cafés e Restaurantes, esta se transformou na mais importante organização onde a influência socialista era maioritária.

A FAO de Lisboa, criada em Fevereiro de 1931, na sua primeira reunião a 9 de Março, elege José Pinho Ribeiro, Presidente da Associação da Hotelaria para a Comissão Executiva,[112]e passa a ser liderada por José Augusto Machado, destacado sindicalista socialista ligado à Associação. A sede da efémera central sindical regional foi a mesma da Associação, na Travessa dos Inglesinhos.

O desaparecimento do Partido Socialista em 1933 teve também como consequência o fim da pequena tendência sindical que suportava ficando os activistas sindicais entregues a si próprios, desmobilizando-se, ou juntando-se aos anarquistas ou aos comunistas.

Foi neste longo processo de luta e reorganização que se caldearam e reforçaram as características unitárias, democráticas, de massas, de independência e de classe do movimento sindical unitário ao longo dos anos, na própria clandestinidade, e que ainda hoje são princípios fundamentais do sindicalismo consubstanciado na actual CGTP-INTERSINDICAL NACIONAL.

Sindicalismo que mantém como marca distintiva uma cultura e práticas sindicais, que alia à luta reivindicativa económica e por direitos laborais a luta politica por direitos fundamentais.

 

 

[97] A Defesa, nº 113, de 2 de Outubro de 1919, fls. 1

 

[98] A Defesa, nº 135, de 1 de Maio de 1923, fls. 2

 

[99] O Dever, nº 7, de 10 de Maio de 1933, fls. 3

 

[100] Ibidem

 

[101] O Dever, nº 6, de 10 de Abril de 1933 fls. 4

 

[102] Ibidem

 

[103] O Dever, nº 4 de 10 de Fevereiro de 1933

 

[104] Nome de família de LENINE, que em regra era desconhecido dos censores, que apenas conheciam o nome de guerra do revolucionário russo.

 

[105] Gonçalves, Bento, Op. Cit.

 

[106] Idem.  Op. Cit. p. 125

 

[107] Ibid. p. 127

 

[108] Ibid. p. 128

 

[109] ibid,. p. 129

 

[110] O Proletário, nº 24, de 29 de Março de 1930, p. 5

 

[111] O Proletário, nº 26 de 1 de Maio de 1930, p. 4

 

[112]  Patriarca, Fátima Op. Cit. vol I p. 113

 

 

A CLASSE NA GREVE GERAL DE 18 DE FEVEREIRO DE 1934, A COOPERATIVA COMO REFÚGIO, A CLANDESTINIDADE

O ano de 1933 foi o ano da consolidação do fascismo. Após a promulgação da constituição, é publicado em Setembro, para entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de 1934, o pacote laboral salazarista de seis decretos que, no que respeita aos sindicatos constitui um terramoto devastador.

Obrigava-os a um figurino único, a negar expressamente a luta de classes nos estatutos, a sujeitar os corpos gerentes à aprovação do Governo, que também se outorgava o poder de demitir as direcções se estas não lhe agradassem e de nomear comissões administrativas da confiança do regime para o seu lugar.

A lei sindical fascista previa ainda a dissolução administrativa dos sindicatos «que se desviassem dos seus fins», proibia as centrais sindicais, a constituição de federações de sindicatos e a filiação internacional. Os trabalhadores da função pública, os pescadores e os agrícolas ficavam impedidos de formar sindicatos, mesmo que fossem do figurino corporativo imposto.

 Os sindicatos não demoram em começar a preparar a resposta ao Ditador.

A 7 de Agosto de 1933, após a divulgação pública dos projectos de lei que visavam a liquidação dos sindicatos, a CIS, liderada por José de Sousa, envia uma carta «a toda a organização sindical operária»[113] em que propõe a realização de uma Greve Geral contra a lei sindical fascista.

A carta termina com a proposta de constituição de uma «frente única» a formar pela CIS, a CGT e a Federação dos Transportes.

Excluíam, nesta fase, a «FAO social reformista» por considerarem que esta, «à sombra da protecção governamental, levava o proletariado à capitulação e à confusão de classes e, ou em última análise, ao fascismo».

Por sua vez, a CGT reúne o seu Conselho Federal a 25 de Agosto, e desta reunião sai luz verde para um entendimento com «as restantes forças do proletariado»

Entretanto, a FAO de Lisboa, liderada por José Augusto Machado (ligado à Associação de Classe da hotelaria) tudo indica que à revelia do seu partido, o Partido Socialista, que não apoiava a ideia da greve geral, chegara «à conclusão de que só pela acção revolucionária se poderia lutar contra a legislação fascista» e propõe-se participar na luta em preparação, colocando para tal, como condição, ter representantes no comité nacional.

Como sempre acontece na difícil tarefa de construção da unidade sindical para a acção comum entre organizações de opções politicas e ideológicas diferentes e de concepção e práticas sindicais distintas, os obstáculos a vencer foram muitos.

Mas, os sindicalistas acabaram por acordar no conteúdo de um manifesto conjunto, e na composição e funções da Frente Única, salvaguardando a autonomia de organização e de informação e propaganda de cada organização integrante.

A CGT, embora afirmando que não abdicaria «de deixar de figurar como a central operária, orientadora do movimento sindicalista revolucionário» é aquela que faz a concessão de princípio de maior vulto. Pois, embora afirmando que não abdicaria de ser a única central sindical legítima, a verdade é que com a constituição da Frente Única reconhece de facto a CIS, o que até à data se tinha recusado a fazer.

  A CIS abdica de parte das reivindicações que propõe, faz concessões na proposta de composição da Frente Única e aceita a participação da FAO de Lisboa, sob a condição de esta se entender com a FAO do Porto para que ambas participem, e assim esteja representado «o movimento social-democrata do país». Isto, apesar de considerar que a posição de Augusto Machado se deve ao facto de ter medo de perder o pé nas associações que influencia, e não porque esteja sinceramente empenhado na luta.

Mais tarde, sob prisão, Augusto Machado parece dar razão aos que duvidavam do seu empenhamento, porque, embora admitindo ter pertencido à Frente Única, negará perante a polícia politica que a FAO tenha feito qualquer esforço na preparação da greve, e dirá «ter recebido ordens terminantes do Partido Socialista para se desligar, desligando, por consequência, a facção que ali representava».[114]

Mas nada nos diz que estas declarações não tenham sido feitas para tentar não ser condenado, o que, se foi assim, conseguiu, visto que o Tribunal Militar Especial o veio a despronunciar, em finais de Fevereiro de 1934.[115]

Todavia, há informações contraditórias nesta questão. O Secretário-geral da CGT, Mário Castelhano, confirma que, por acordo da CGT e da FAO, as deslocações preparatórias da greve a Estremoz, Abrantes, Portalegre e Campo Maior, foram feitas por delegados da FAO, qualificando algumas delas de «razoavelmente bem sucedidas».[116]

Seja como for, desta vez, as organizações sindicais não cometeram o mesmo erro de 1926, agindo cada uma para seu lado. Após as longas, conflituosas e difíceis negociações foi finalmente formada tão almejada Frente Única, constituída pela CIS (comunista), a CGT (anarquista), a FAO (socialista), a Comissão dos sindicatos Autónomos, e a Comissão de Trabalhadores do Estado.

Dos 754 sindicatos existentes, apenas 57 tinham aceite adaptar-se à lei fascista, e destes, alguns, como era o caso na hotelaria, provinham de cisões nas associações de classe promovidas por adeptos do novo regime.

O último número de O Dever, que anuncia a sua própria suspensão por motivos contrários à sua vontade, «não sabemos quanto tempo durará a suspensão, talvez muito, talvez pouco ou talvez não volte a publicar-se»[117] dá voz a outro grito de angústia da associação de classe dos trabalhadores de hotelaria.

Num balanço dramático, em que se adivinham maus presságios para o futuro, os dirigentes da Associação fazem questão de acentuar que sempre se pautaram pela solução dos conflitos dentro da lei, obedecendo inclusive à notificação da autoridade quando esta os avisou que nenhum estrangeiro poderia fazer parte dos corpos gerentes, apesar de a ela pertenceram muitos súbditos espanhóis.

«Havendo certos períodos da vida colectiva em que foram eles os principais sustentáculos da organização, não deixando nunca de obedecer à lei (…)

 Estranham, por isso, que tendo sempre cumprido com os seus deveres sociais não se lhes reconheça agora o direito de continuarem defendendo os seus pontos de vista na sua organização, obrigando-os a filiarem-se num organismo dirigido pelos seus ferozes inimigos.

Por isso, todos os componentes da organização estão firmemente dispostos a preferir o desaparecimento da sua organização, a terem de render vassalagem aos que em todas as conjuras os guerrearam, e preferem robustecer a sua cooperativa, e dentro dela viverem colectivamente, a entregarem-se manietados, à vontade dos dissidentes da sua organização.»[118]

A assumpção expressa da cooperativa como refúgio significava em si, sentirem-se e considerarem-se derrotados à partida, antes da refrega, e darem o ouro ao bandido, «os nacionais», sem luta.

Não foram os únicos dos que não aceitaram a lei corporativa a tentar dar continuidade legal à sua associação de classe através da sua transformação noutro tipo de organização. O Sindicato dos Bancários de Portugal conseguiu obter o alvará para um «Grémio dos Empregados Bancários».[119] Outros tentaram transformar-se em associações culturais, recreativas e desportivas.

Mas estes artifícios eram demasiado ingénuos e visíveis para escaparem à vigilância da polícia politica. Ás primeira tentativas do género, o Governo tomou medidas para as impedir, considerando-as «máscaras legais» para «uma organização de classe absolutamente ilegal»[120]

Mesmo assim, Associação da hotelaria apoiou a proposta de greve geral, e envolveu-se na sua preparação. Chegaram mesmo a fazer das tripas coração, e, em prol da unidade, foram falar com os «nacionais» que mais tarde, interpretam assim a diligência:

 «Os chefes das classes operárias acabam de escrever mais uma página de sangue nos anais da vida dos operários portugueses (…) A classe a que pertencemos foi uma das mais flageladas pelos chefes, onde nestes últimos tempos, fabulavam, chegando a ter na sua sede da Travessa dos Inglezinhos, a direcção das federações e confederações gerais (…)

 Para a greve geral, abordaram alguns elementos do «sindicato nacional», e como a resposta fosse negativa e terminante, fomos também inscritos no rol negro, para, caso a arrancada triunfasse, assaltarem o Sindicato e fazerem pagar com a vida a alguns dos que tiveram o atrevimento de os guerrear e de dizer não.»[121]

Os «nacionais» não se limitaram a recusar aderir à Greve Geral, combateram-na, e foram longe no afrontamento e na provocação. Marcaram precisamente para o dia 18 de Janeiro, as primeiras eleições do sindicato após a adaptação dos estatutos à lei fascista e da publicação do correspondente alvará corporativo.

Concorreram ao acto eleitoral duas listas, ganhando a que era encabeçada por Manuel Ferreira e tinha como segundo nome, Manuel Mendes Leite Jr.[122]

Os «nacionais» vangloriavam-se de ter sido os primeiros a aderir ao Estado Novo, e explicavam porquê: «as classes operárias só vegetavam ao sabor dos mais audaciosos porque lhes faltava uma doutrina com uma finalidade, e um guia como Salazar.»[123]

Saudavam cada «sindicato nacional» que ia surgindo, como um «novo filho» do sindicato da hotelaria, tal era o empenhamento que punham ao serviço da Ditadura nos seus objectivos de corporativização dos sindicatos.

O Governo programou e tomou medidas para desmantelar a Greve Geral. Entre as quais, a prisão de activistas preponderantes na sua organização.

A Greve Geral de 18 de Fevereiro de 1934 teve adesão total em Silves, Sines, Almada, Coimbra, e na Marinha Grande, onde os operários desarmaram a GNR, ocuparam os correios e telecomunicações, a Câmara Municipal, e elegeram um soviete, assumindo o poder político na vila durante várias horas.

Em Lisboa e um pouco por todo o país, a adesão foi fraca, tendo falhado quase completamente o sector estratégico dos ferroviários e a Carris de Lisboa. Apenas deixaram de circular alguns comboios que foram alvo de sabotagens e que por esse motivo descarrilaram.

A repressão que se abateu sobre os grevistas foi enorme. A Marinha grande ficou ocupada pelos militares que a retomaram, durante vários dias. Foram feitas milhares de prisões em todo o país. Para não serem presos, muitos sindicalistas passaram à clandestinidade ou refugiaram-se em Espanha, onde a República, que tanta esperança tinha trazido aos revolucionários portugueses, fora implantada há três anos.

Dia 19, Salazar reúne o Conselho de Ministros, assume directamente a direcção da repressão, anuncia a demissão dos funcionários públicos que participaram nos acontecimentos, proíbe as empresas de deixar reentrar os grevistas ao serviço, avisa que vai regulamentar a proibição da greve, instituir sanções contra os sindicalistas que instiguem à greve, e mandar julgar os activistas sindicais presos nos tribunais especiais que havia criado há dois meses.

Em 29 de Abril, morre, sob tortura da polícia politica, o dirigente sindical dos ferroviários e militante do PCP, Manuel Vieira Tomé. A versão oficial é que este se suicidou na sua cela.

Dias depois, morre Vítor Constantino, da função pública, destacado sindicalista anarquista e um dos principais dirigentes do «18 de Janeiro», que se encontrava em greve da fome.

A tortura sobre os prisioneiros por parte da polícia torna-se norma.

Em comunicado emitido no mês de Maio pela «Fracção dos Comunistas Presos», numa altura em que o Tribunal Militar Especial já tinha proferido dezenas de sentenças, afirma-se, sobre o cataclismo repressivo que se abateu sobre os grevistas: Quatro Mortos! Cinco Loucos! Dezenas de estropiados! 500 Prisões! Sentenças que montam a séculos!»[124]

A contagem feita na altura pelos comunistas estava ainda aquém da realidade. De facto, foram presos de Norte a Sul do país 696 activistas, ligados à Greve Geral. 76 Antes da greve, 599 no próprio dia, e 21 posteriormente[125].

Muitos dos detidos são deportados para os Açores, e posteriormente para os campos de concentração entretanto criados, em Cabo Verde e Angola, onde uns penaram em alguns casos dezenas de anos até serem libertados, e outros morreram nos calabouços de condições miseráveis e propositadamente insalubres e doentias sem chegar a ver a liberdade.

A Greve Geral de 18 de Janeiro tem sido objecto de apreciações diversas, na sua maioria, mesmo as oriundas de sectores políticos ligados aos trabalhadores, salientando principalmente os erros e as insuficiências na sua condução, concluindo em regra pelo seu fracasso. Onde há heroicidade e resistência, grande parte dos analistas só tem visto fraqueza, erros e disparates.

Mas, não é difícil de perceber que com todo o dispositivo repressivo montado pelo Governo de Salazar, não foi apenas por erros de direcção e organização que a greve não teve maior êxito.

Se é certo que houve erros graves no processo de organização e condução da luta, também é verdade que é muito mais fácil apontar esses erros à posteriori, do que preveni-los antecipadamente.

É verdade que o fascismo não foi derrotado pelo 18 de Janeiro, e dificilmente o teria sido naquela correlação de forças e naquele contexto nacional e internacional, por maior que tivesse sido a adesão à greve. Mas, tivesse o Ditador sido derrubado, e a história e as análises seriam outras.

Uma coisa é certa. O 18 de Janeiro foi uma resposta corajosa e heróica dos trabalhadores portugueses à Fascisação, de luta pela liberdade, e de defesa dos seus sindicatos.

Com os sindicatos encerrados pelo regime fascista e a consequente perda de apoios logísticos e financeiros, órgão de imprensa, e grande parte dos dirigentes presos, exilados, ou em deserção, o movimento sindical foi praticamente decapitado e destroçado.

 Mas, os que sobreviveram e continuaram, em condições dificílimas, muitas vezes depois de terem saído ou fugido das prisões, na clandestinidade, iniciaram um novo e longo ciclo do sindicalismo e da luta dos trabalhadores portugueses. Um período heróico de resistência e combate contra a ditadura fascista, em que muitos foram parar ás masmorras, foram torturados, e pereceram. Ciclo de que sairíamos com o 25 de Abril de 1974, abrindo uma página de ouro na história de Portugal, e na do sindicalismo português, que iniciou aqui uma das etapas mais pujantes e frutuosas do seu percurso, em benefícios obtidos para os trabalhadores.


 

[113] BN-AHS, núc. CGT, caixa 63

[114] Auto de declarações de José Augusto Machado de 27-1-34, pró. 1011-SPS, citado em Os Sindicatos Contra…

[115] PATRIARCA, Fátima, Op. Cit, p. 505

[116] Auto de declarações de Mário Castelhano de 29-1-1934, proc. 1011-SPS

[117] O Dever, nº 14, de 15 de Dezembro de 1933, fls. 4

[118] Ibidem, fls.1

[119] Patriarca, Fátima, A Questão Social no Salazarismo…pp.255,256.

[120] Circular do Ministro do Interior, citada em Questão Social…

[121] A Voz da Razão, nº 13, de Janeiro de 1934

[122] Acta, da AG, nº 13 de 18 de Janeiro de 1934

[123] A Voz da Razão, nº 15, de Março de 1934, fls. 3

[124] Avante! II série, nº 1, de Junho de 1934, Citado em Os Sindicatos Contra…

[125] PATRIARCA, Fátima, op. Cit. p458

 

Este trabalho foi elaborado por Américo Nunes a partir do livro de sua autoria Diálogo Com a História Sindical – Edições Avante, Lisboa – 2007

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